E agora, que faço eu da vida sem você?
Leitura: 5 minEste ano fazem dezoito anos que a minha mãe morreu, exatamente a mesma idade que eu tinha na época: isso quer dizer que, a partir de agora, eu já vivi, sem ela, o mesmo tempo que vivi com ela. E isso é muito loko.
Eu nunca esqueço a sensação de estar perdida, sem chão e sem ar ao me dar conta, de um dia pro outro, que eu teria que viver num mundo em que ela não estivesse. Que ela não estaria ao meu lado quando eu tentasse, conseguisse ou não realizar meus sonhos, quando eu tivesse filhos, ou quando conseguisse ser cantora e fizesse um show, quando publicasse um livro, quando eu me formasse, quando eu fosse morar sozinha…saber que eu teria que passar por tudo isso sem ela ao meu lado, sem a força, a escuta e o amor que ela me trazia quase me fez desistir de tudo, e eu tentei, mesmo que com muito pouca possibilidade de dar certo, dar algum fim à minha vida por isso. Eu lembro da sensação de me sentir praticamente sem pernas, sem pés, como se esses me tivessem sido arrancados e eu não precisasse ou não quisesse ir pra lugar nenhum nunca mais – e eu não queria mesmo, eu queria só parar de viver e não ter que lidar com aquela dor.
A merda é que eu tive realmente uma mãe muito boa, e para uma pessoa como eu, que sempre se sentiu um outsider de tudo porque era doida, tê-la na minha vida foi muito importante pra que eu fosse quem eu sou hoje e pra que eu não me sentisse tão sozinha no mundo. Minha mãe estava longe de ser perfeita, mas ela sempre foi a mãe que conseguia (a melhor) e exatamente aquela que eu precisava.
Então, cês precisam entender que nem escrever esse texto é fácil, que dirá viver no mundo sem ela.
A minha mãe era bem loka, engraçada, palavruda. Era solta e muitas vezes moderninha, embora tivesse suas questões. Eu acho que a minha mãe sempre entendeu que eu era diferente. No fundo ela sabia que tinha uma filha doida e artista. Me incentivou em tudo que eu fazia: menos pra fazer faculdade de cinema, porque “era coisa de rico”, ela dizia. Mas os cursos de teatro, as peças, as apresentações, coreografias… ela foi e assistiu a tudo que conseguiu, e me incentivou em tudo que podia.
Ela também ouvia minhas teorias conspiratórias sobre a Bíblia, nos meus momentos mais duros de ateia raivosa na pré-adolescência e, mesmo tendo religião e sem entender muito, me deixava falar o que eu queria. Me ouvia até cantar, quando eu ainda nem sabia que ia ser cantora. Ela me deixava ser exatamente quem eu era.
Foi ela quem me levou à terapia aos dezesseis anos de idade, de onde eu nunca mais saí, e razão pela qual estou podendo escrever este texto hoje, viva. A minha mãe também me deu um ofício, quando identificou, em um momento da minha adolescência em que eu estava deprimida, que eu precisava me ocupar. E se disfarçou de cliente, pra me contratar pra fazer a minha primeira tradução. Já são vinte anos de mercado e quem me mostrou que eu podia fazer esse trabalho foi ela.
Nunca mais na minha vida eu tive o mesmo acolhimento e compreensão que eu tinha dela. Ela não me olhava estranho pelo que eu dizia ou por quem eu era, no máximo corria comigo pro homeopata, às vezes dava uns esporros, umas risadas na minha cara, mas sempre me aceitava. Nunca se fechava, minha mãe era aconselhamento 24 horas por dia. Acolhimento, amor. Lembro quando a gente dormia de conchinha quando ficávamos doentes e ali se tornava o lugar mais confortável do mundo, e como ela dormiu, várias vezes, feito um cristo redentor entre eu e minha irmã, de mãos dadas com cada uma, depois de ler um livro pra gente. A vida toda nos lembrando como a gente era bonita, mesmo que nem sempre ela própria se achasse.
Lembro que uma vez ela achou meu diário e leu que eu tinha tentado me matar aos oito anos. Aquilo quase matou ela, me partiu o coração, e ela se culpou tanto por não ter percebido nada, mas como é que ia perceber se eu aprendi tão bem a disfarçar o que sentia, se eu nem sabia que o bullying que sofria era errado e não algo que eu merecia?
Quando começaram as perguntas sobre sexo, passou a mão num livro “De onde vem os bebês?” e sentou pra nos contar tudo que podia. As calcinhas ela ensinou a lavar no banho, e tem maior lição de independência do que essa? Os homens sem cueca “porque todas estão sujas” que o digam.
Mas a maior lição que ela me deixou mesmo foi a de celebração. Minha mãe celebrava muito a vida, principalmente nos nossos aniversários, que eram dias especiais em que podíamos fazer quase tudo que queríamos. Era uma gastação de um dinheiro que a gente nem tinha, mas que ela gastava feliz pra que a gente entendesse o quanto era importante celebrar mais um ano de vida.
Então, assim, eu sinceramente não sei como sobrevivi até aqui sem ela. E eu encontrei a música. A música que ela ouvia no discman todos os dias antes de dormir e que, muito tempo depois, se tornou uma das muitas e mais importantes razões que encontrei nestes anos todos pra permanecer viva.
São 18 anos sem ela, e sua ausência ainda me dói, embora eu fale muito bem sobre isso. O que sei é que a dor dessa saudade foi cristalizando, porque o que ela me deixou e o que vivemos, vem, aos poucos, formando e preenchendo quem sou hoje. E ela me deixou tanto, mas tanto, que na maior parte do tempo eu me sinto imensa. Cheia do amor que ela me deu.
Ô, mãe. Obrigada por tudo, e eu posso não ter me tornado quem você gostaria, mas sei que você me aceitaria sempre, de qualquer jeito que eu quisesse ser. Cê ia achar me achar doida de trabalhar com nudez, mas aposto que ia achar o maior barato. A minha escrita, você sempre enxergou e leu. E eu me formei! Aos trancos e barrancos, ao longo de 12 anos, mas consegui. Você sonhava com isso, lembra?
Queria dizer que muita coisa aconteceu e eu quase morri, mas tô aqui ainda de pé até hoje, vivendo o que você me ensinou, sendo a melhor que posso, encontrando novas razões pra viver todos os dias, sempre que consigo. Eu sei que você já tinha algum orgulho de mim, mas eu espero ainda te trazer um pouco mais nessa interminável jornada de ser cada vez eu mesma. Te amo, mãe lôra, saudades imensas.