Ismália
Leitura: 4 minPor Anna Beatriz Silva
Foto: Pablo Monteiro
Em 2018, certa vez entrei no twitter e me deparei com Marielle Franco perguntando, depois de uma chacina, quantos mais precisarão morrer. Marielle foi assassinada neste mesmo ano. Nesses três anos, convivemos com a repetição de uma rotina obituária. Não houve uma semana sem que soubéssemos da morte de mais alguém. Todo corpo alvejado é a morte de um sonho. Toda vez que uma mãe se curva a um caixão, diante de uma morte evitável, é a morte da esperança. Há a possibilidade de acreditar no futuro vivendo em um país, que desde 1500, legaliza a morte de negros, indígenas e pobres?
Qual é o peso de um sonho? Como é possível sonhar, acreditar e construir o futuro, vivenciando o genocídio e entendendo, mais do que nunca, que a necropolítica é traço estruturante do Brasil? Qual é a ordem natural das coisas? Quando poderemos viver o natural e não a barbárie? Quando se tem uma pele alvo, como sobreviver a um moinho, que é alimentado todos os dias?
A Kathlen tinha 24 anos. Gerava uma vida. Uma nova chance. Kathlen poderia ser minha amiga. Idades próximas, interesses semelhantes e amigos em comum. Poderia. Do futuro do pretérito. A gramática indica o que mais dói: Trata-se de um futuro interrompido. Entre normas e conjugações, as palavras não são o suficiente para expressar o que é ouvir a mãe de Kathlen, Jaqueline de Oliveira Lopes. Quantas respostas são dadas, na ínfima e cruel tentativa de justificar o injustificável? Em que outro cenário é possível encontrar, na cidade do Rio de Janeiro, uma jovem grávida ser alvejada, senão no constante estado de exceção vivido nas favelas?
O projeto das UPPs (Unidade de Polícia Pacificadora) foi sustentado, custeado e defendido por muitas pessoas, muitas as quais assistem hoje, barbarizadas, para as enormes consequências em relação à violência e à expansão miliciana. Quantos mais morrerão? Quantos sonhos continuarão sendo sufocados?
Poderíamos falar sobre a segregação espacial, recorrer a um resgate histórico intenso e mergulhar nas iniciativas de Pereira Passos. Poderíamos, também, falar sobre a Ditadura Militar e os avanços cruéis nas favelas. Mas absolutamente nada, nenhum fundamento e reflexão crítica são capazes de explicar o que é viver sob a mira de um Estado que nos quer mortos.
Para superar uma crise de ansiedade, é preciso respirar fundo, encontrar um novo foco, se alimentar bem, beber água e ter uma boa noite de sono. Como se manter minimamente são, em meio ao medo que esse cotidiano traz? Como viver as fases da vida, correspondentes à idade e à geração, se precisamos pensar, sempre, em nos mantermos vivos?
Entrei na internet hoje, assim como em 2018 e mais uma vez, pude constatar o óbvio, o capitalismo lucrando com nossas mortes. A empresa em que Kathlen trabalhava, usou o cupom utilizado por ela, enquanto vendedora, dizendo que a comissão seria revertida à família. Comissão de venda? De uma funcionária assassinada? A engrenagem do lucro, que nunca parou e que começou sendo estruturada na morte dos nossos ancestrais, continua no marketing e na dança letal da necropolítica.
Eu tenho sentido muita dor. Constantemente sonho com perseguições, fugas e luto pra sobreviver até nos meus sonhos. O luto, pra quem não faz parte do pacto da branquitude, é mais do que substantivo. É verbo. É reunir o que sobra de força e de esperança e tentar construir um futuro diferente, para que Mayas e Zayons possam conhecer o mundo, ter mais segurança e construírem os próprios sonhos. Nesse curto espaço, não tenho o que falar à Jaqueline, mãe de Kathlen, mas desejo, do fundo do meu coração, que ela receba o amor que sua filha levou para o mundo. Encerro com a mesma pergunta: Quantos mais precisarão morrer para que essa guerra acabe?