Negritude gourmet

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E a continuidade do engessamento ao qual os brancos sempre nos condicionaram

Começo este texto com uma afirmação: no Brasil, não existe branco. O sul pode discordar de quiser. Tô nem aí. Mas se, em algum momento da sua árvore genealógica teve um negro ou um índio, você não é branco. Ah, então é pardo. Que seja. Eu não tô aqui pra ditar a regra da cor.

Eu tô escrevendo isso porque ontem, ao publicar sobre a apropriação de uma foto de uma criança negra que alguém viu na internet e resolveu tatuar, eu me coloquei como negra. Não tardou e começaram os questionamentos (que já aconteceram outras vezes aqui nesta rede social). “Mas vc é branca, tá falando oq?” E a sequência que veio foi de uma aula sobre como uma pessoa pra se declarar negra hoje no Brasil precisa ter graduação em africanismo, mestrado em colorismo e doutorado em fenótipos. Caso contrário, não é negro (se não for retinto).

Alguém também disse que entende meu posicionamento, mas que se vê numa sinuca de bico e, a partir do seu entendimento e busca por conhecimento, prefere se declarar parda. Tá tudo bem, gente.

Mas eu demorei tempo demais na vida pra entender minha origem pra agora me dizer parda. Eu não preciso ter sofrido o mesmo que meus ancestrais negros sofreram para saber que eles foram estuprados, humilhados, agredidos e mortos. Pela cor da sua pele. E, por isso também, eu tenho orgulho e honro a cada um deles.

“Ah, mas um brasileiro negro retinto sofre muito mais que você, parda, morena, bla bla bla.” É competição de desgraças também que a gente tem que fazer pra ser ou não negro? E você lá sabe da minha história, do que eu sofri ou deixei de sofrer?

Eu passei tempo demais ouvindo que eu era muito bonitinha e tinha a cor do pecado sem entender como um homem branco estava sexualizando meu corpo infantil. Eu passei anos e anos sem entender o porquê de um amigo do meu avô no interior de Minas ter dito meio brincando meio real quando eu tinha 7 anos que podia viver com ele porque ele gostava da minha cor (não muito preta, nem muito branca) e do meu cabelo de índia com franjinha. Eu sorri agradecendo sem entender o que ele quis dizer, mas achei que era um elogio e que eu devia gratidão por isso. E isso se repetiu tantas vezes, com tantos outros.

Eu passei anos sem entender porque o meu pai rezava quando minha mãe tava grávida dos meus irmãos mais novos (e depois soube que o mesmo aconteceu quando ela estava grávida de mim) pedindo a Deus pra que a gente tivesse “cabelo bom” e não parecesse muito negro. Ele, um homem negro que ajudou a mãe a criar os irmãos trabalhando desde os 7 anos porque o pai os abandonou. Uma das poucas famílias negras da pequena cidade no interior do Paraná.

Então desculpa lá se eu não sou especialista em fenótipos, mas eu odeio que a gente tenha que seguir se colocando em caixinhas como a branquitude sempre fez conosco. Num Brasil tão diverso, querer cagar regra e dizer que eu não posso “invocar meus ancestrais negros”, é só estúpido.

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