Nem tudo é o que parece ser – principalmente na política
Leitura: 6 minOra, em se tratando de mídia alemã, muita coisa tem virado notícia. Capitaneadas pelas discussões e ações propriamente ditas por parte do novo Governo da Coalizão do Semáforo (do alemão, Ampel) em relação ao enfrentamento do que se considera uma “nova onda” de infecções por Covid-19, muitas são as pautas diariamente apresentadas.
Uma delas, em especial, chamou atenção. Foi notícia ontem, 28 de dezembro, pelo periódico alemão Bunte e replicado pelo jornal Welt nas redes sociais, que o marido de Annalena Baerbock, uma das líderes da cúpula do Partido Verde alemão (Bündnis 90/Die Grünen) e recém-empossada como primeira mulher à frente da pasta do Ministério Federal de Relações Exteriores, pediu demissão do seu trabalho em função da carreira da esposa.
A postagem original do periódico Bunte (Coloridos, em tradução livre e espontânea, bem ao estilo Milton Cunha) traz reportagem a ser veiculada na capa na próxima edição física e online da revista. Nela, Baerbock e o marido aparecem em foto pomposa com o título “Das Geheimnis ihrer Ehe” (“O segredo do seu casamento”, em tradução livre), mas a revista ainda destaca uma retrospectiva dos casórios, términos e novos amores durante o ano, bem como a aparição pública do Bebê Real, filha de Meghan Markle e do Príncipe Harry, “a pequena Lilibet”, já apelidada como se fosse da família. A publicação, descrita pelo Wikipedia em brasileiro como uma “Caras” alemã, de fato, realmente impressiona por sua semelhança com a coirmã tupiniquim…
Em entrevista, Daniel Holefleisch (também conhecido na terra do chucrute como “Danielzin pega carne” [em tradução literal e livre do nome do sujeito] – desculpem esse aprendiz de jornalista, minha 5ªB não consegue NÃO se manifestar diante do nome do garotão), 48 anos, explica que essa já era uma escolha bem acertada entre o casal diante da real possibilidade de Annalena de estar presente ativamente no governo. Ela, inclusive, já falara sobre isso para a revista Bild em maio passado, ainda enquanto candidata ao posto de Chanceler: “(Tornar-se chanceler) significa estar dia e noite total e completamente à disposição”. Mesmo tendo ficado em 3º lugar na corrida, graças ao excelente número de votos de seu partido no Parlamento, foi chamada para compor o gabinete de governo do novo Chanceler alemão, Olaf Scholz (SPD). A família, portanto, estava já devidamente preparada para tal mudança.
Para que a esposa pudesse estar 200% concentrada nos deveres para com a nação, diz a publicação, era mais do que necessário que seu marido equilibrasse as ações assumindo toda a questão de cuidado com a casa, bem como toda as demandas relativas à educação das duas filhas do casal, de 6 e 10 anos. Para tal, a Bunte expõe que Holefleisch abriu mão de seu emprego como lobista da empresa DHL, que é do setor de logística internacional com serviço de correio expresso e é ligada aos Correios da Alemanha (Deutsche Post), e de seu salário de mais de 10 mil euros ao mês.
Mas por que essa notícia nos é importante? Uma possível resposta se divide em dois tópicos, sob os quais faz-se necessário um pouco de atenção.
O primeiro ponto é a construção da narrativa do acontecimento. A revista Bunte molda a explanação da notícia claramente para que o leitor louve o marido de Annalena, explicitando as razões para isso, mas sem levá-las tanto em consideração. Veja: não se trata de uma mulher e mãe que é alçada a um posto histórico e importante para a sua nação, tendo como consequência o desligamento do companheiro para cuidar da família, em virtude da situação; trata-se do desligamento do marido, de um emprego que paga absurdamente bem (como comparação, o salário-mínimo bruto na Alemanha é de aproximadamente €1.600, em uma jornada de trabalho de 40 horas semanais), para cuidar das crianças, em virtude da nova ocupação da esposa. Definitivamente, não é a mesma coisa. A ponto em questão não é uma omissão de informações, mas, em verdade, como elas são apresentadas.
Nesse sentido, parece-me que há na reportagem uma intenção de louvar, enaltecer o feito do homem, e não o da mulher, já que é ele, dessa vez, o responsável pela casa e pela educação dos filhos, tarefas historicamente relegadas à figura das mulheres. Soa para mim como se a revista comemorasse esse feito masculino: “vejam! os tempos estão mudando! louvemos, pois, este homem corajoso, que faz tudo por sua mulher!” Sabemos, porém, que, em se tratando do inverso, nem notícia haveria, muito menos digna de capa. “O normal não é notícia”, pensariam eles.
O segredo do casamento, portanto, é um homem disposto a tudo para alavancar sua mulher. Essa narrativa pode ser comprovada em uma frase apresentada pela revista:
„Ohne seine bedingungslose Unterstützung wäre Annalena Baerbock, die vor 2017 öffentlich wenig bekannt war, vielleicht nicht so weit gekommen.“
(“Sem o apoio incondicional do marido, Annalena Baerbock, que até 2017 quase não era conhecida do público, talvez não tivesse ido tão longe.”)
Não que haja problema em haver renúncia de uma das partes de uma relação em função da outra. Longe disso! Cada família, cada casal tem seus arranjos. Não é sobre isso. A questão clara aqui é de narrativa. E de machismo. Velado, mas machismo. Eu sei, não precisa dizer: não sou mulher, não posso ficar falando disso assim. Mas isso chama MUITA atenção.
O segundo ponto a ser observado é menos polêmico, mas igualmente instigante. É uma questão de novidade. Mesmo que, na humilde visão deste correspondente, a matéria tenha sido deliberadamente escrita de maneira extremamente tendenciosa por parte do periódico alemão, ainda assim, trata-se de um fato interessante para toda a sociedade. É um passo importante e orgânico, isto é, natural, em direção de avanço para um debate histórico e profundamente atual.
A necessidade de mudança de paradigmas sociais, ambientais e econômicos parece ter sido bem assimilada enquanto prioridade entre os atuais membros do governo, com muita ênfase para a parte Verde do Semáforo. Há 20 dias, virou notícia que Cem Özdemir dispensou a limusine e foi de bicicleta do Parlamento Alemão até o Palácio Bellevue, residência oficial do Presidente da Alemanha, Frank-Walter Steinmeier, a fim de ser empossado como Ministro Federal de Alimentação e Agricultura. O Twitter foi à loucura naquele dia. E ele ainda chegou antes de todo mundo no Palácio!
Não parece ser uma simples coincidência. De fato, também não parece ser uma agenda planejada, arquitetada por um marketeiro desses que se cria facilmente na América do Norte, com intuito somente de gerar popularidade política e identificação das redes. Possivelmente, podemos estar diante de agentes políticos mais conscientes do que se discute no mundo e que, portanto, começam a apresentar ações próprias, individuais, como resultado dessas discussões. Se o confinamento compulsório do lockdown trouxe consigo tantas reflexões acerca de temas tão sensíveis para a sociedade, esses acontecimentos, mesmo singelos, emergem como bons sinais. Quem sabe de cada vez mais ação prática, individual ou em grupo, de modo a reduzir disparidades, estabelecer justiça e, sobretudo, cuidar do planeta.
Por aqui, desconfiamos de tudo. Mas e você, o que acha?
Fontes:
https://www.bunte.de/stars/star-life/stars-privat/annalena-baerbock-das-geheimnis-ihrer-ehe.html (Revista Bunte)