O Qatar é aqui
Leitura: 3 minEstranho esse título, né? Foram tantas matérias sobre as leis do Qatar nessa época de Copa do Mundo e as pessoas ficam achando as leis de lá tão absurdas, mas será que temos tanta liberdade assim? Somos mesmo tão diferentes?
Então, “por exemplo, no Qatar, segue-se a tradição islâmica e, por isso, mulheres precisam estar vestidas do pescoço aos calcanhares”. E não é isso o que faríamos se pudéssemos? E tenho certeza de que nem assim seríamos respeitadas, como as de lá não também não são.
Lá, teve a repórter brasileira que sofreu assédio enquanto caminhava para o metrô, sendo seguida, abordada, filmada e fotografada por homens no trajeto. Mas aqui, teve famoso arrancando biquíni de mulheres em festa; teve vereador agarrando e beijando à força outra vereadora durante sessão de Câmara Municipal, só essa semana. Tem assédio e importunação todo santo dia. Tem os grupos de Telegram que vendem vídeos de mulheres sendo filmadas em apartamentos alugados, banheiros, provadores e afins. Tem crianças sendo abusadas dentro e fora de casa em tudo quanto é lugar do Brasil. A gente sabe.
Tá, “mas e o humorista detido e ameaçado por embriaguez, sem nenhuma explicação?” Poxa, e as pessoas pretas aqui que são abordadas, torturadas e mortas em tantos casos de violência policial? A população favelada que não tem um minuto de sossego nem onde moram? E as que morrem por balas perdidas pelo descaso de um Estado que nunca se preocupa com elas? Com uma polícia que quase sempre “confunde” furadeiras e guarda-chuvas com armas e atira sem pestanejar, mas só em pessoas pretas?
Ah, “mas lá as mulheres não têm liberdade!”. E aqui, será que nós temos? Cês viram quantas mulheres andam sendo libertadas após serem colocadas em cárcere privado por seus companheiros? Ou encontradas em situações de trabalho análogo à escravidão? E as mulheres sendo mortas, agredidas e estupradas todos os dias? E as mulheres pretas que morrem por abortos ilegais, que mais sofrem violência obstétrica, que mais são abandonadas com seus filhos por seus maridos, que menos conseguem oportunidades, que mais precisam se manter em relações violentas?
Tá bem, “mas lá não pode ser gay nem defender direitos LGBTQIAP+, dá prisão e morte!”. E aqui não somos mortos e agredidos também em tudo quanto é dia? Em tudo quanto é lugar? Só quem não vê isso é quem tem o privilégio de poder andar de mãos dadas com seu companheire e beijar na boca na rua sem sofrer alguma agressão. E quem nunca conheceu alguém que foi expulso de casa por sair do armário. Quem nunca soube quem foi morta por ser quem é, nesse país que figura no primeiro lugar da lista de países que mais mata pessoas trans no mundo inteiro. Fora as taxas altíssimas de pessoas suicidadas pelo simples direito de existir.
Sabe, será que somos mesmo assim tão livres?
“Não, mas lá tem uma lei muito absurda em que eles condenam a vítima de estupro por adultério” e aqui não tivemos que criar uma lei para que uma vítima de estupro não fosse culpabilizada, descreditada e humilhada num julgamento? Não precisamos provar o tempo todo as violências que sofremos?
Olha, poderia ficar exemplificando horrores aqui, mas só queria dizer que não estamos tão longe assim do Qatar, que não deveríamos nos surpreender tanto com as leis deles porque aqui temos sanções e leis muito parecidas, que podem não estar necessariamente escritas e registradas em nossos códigos, mas que estão muito bem inscritas nas mentes e percepções das pessoas.