“demonstro muita raiva, muito rancor, e muito ódio”

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Foto: Pixabay

Já ouvi de portugueses, antes mais chegados, que deixaram de ler minhas coisas ou se afastaram de mim, porque eu “demonstro muita raiva, muito rancor, e muito ódio” contra o povo português.

Essas pessoas imaginam que eu não penso sobre isso, que eu não penso sobre o que eu escrevo, que eu não conheço as consequências de se dizer o que precisa ser dito.

Eu fui obrigado a deixar meu país, perseguido por extremistas de direita, milicianos e policiais, que até hoje fazem buscas nas casas onde eu morei, num país mergulhado no caos e no desastroso fascismo.

Eu carrego no corpo as consequências. Então eu sei, e eu penso sobre o que eu escrevo. Eu vivi e andei numa pobreza que vocês JAMAIS saberão, vocês não tem embasamento para refutar este ponto de vista, porque até dentro do Brasil eu era marginal.

A questão é uma:

Enquanto o que sai de mim para fustigar portugueses forem palavras, eles continuam ilesos e confortáveis.

Porque eu não vou entrar nas casas deles, dar na cara deles, roubar suas filhas virgens e esposas, não vou estuprá-las, não vou pegar os cartões bancários deles, não vou tirar todo dinheiro que eles tem no banco, não vou pôr suas casas a baixo, não vou amarrá-los em correntes de ferro, não vou incendiar a comida nas suas dispensas, não vou obrigá-los a falar a magnífica língua brasileira, não vou impor minha fé, não vou mudar seus nomes, não vou separar suas famílias, não vou criar um rio de sangue derramado dos seus corpos pelas ruas de Lisboa, eu não vou tomar o poder na Assembléia da República, eu não vou cortar a cabeça de todos vocês, sem poupar nem os infantes.

Eu não vou fazer isso. Isso tudo,

vocês fizeram.

Enquanto o que eu lhes devolver forem apenas palavras, estejam muito satisfeitos.

Nada, nenhum processo de violência pagaria o estrago que fizeram nos 5 continentes, onde puseram os pés.

Vocês não libertaram ninguém. Não enriqueceram ninguém. Não construíram países livres, autônomos, prósperos e independentes. Vocês destruíram sociedades que eram assim.

Vocês tem muito ego, e nele habita toda a fragilidade de vocês. Agradeçam a vida por eu ser uma VOZ que incendeia vocês, incendeia um fogo que ninguém é capaz de apagar: dentro da suas almas. Onde vocês ouvem alguém falar meu nome, e vocês tem ânsias de vômito. No centro da cidade da alma de vocês, eu construí meu monumento. Com palavras.

Não importa quantas páginas Portugal vire, quantas sociedades ele se torne, ele ainda tem uma dívida, com os 5 continentes deste planeta.

E os filhos da sua violação agora crescem, pensam, falam, questionam e são odiados por vocês. Abandonados por vocês. Rechaçados por vocês.

Todos os nossos defeitos e racismo veio de vocês. Tudo de bom que há em nós, ou veio dos indígenas, ou dos africanos. De vocês, herdamos a semente do mal. Vocês deixaram um rastro de destruição por onde passaram. Há crianças na Índia que, quando erram, a mãe mete medo nelas dizendo que Afonso de Albuquerque virá comê-las. Tenham vergonha disso, peçam desculpas a Índia.

Odiar Portugal não é odiar o país Portugal. Odiar Portugal é odiar o passado do país que exterminou pessoas. É odiar, todas as vezes que um português destrata uma pessoa negra, ou imigrante, essa atitude que se encaixa no passado. Quando vocês nos odeiam, os antepassados de vocês se erguem entre nós. Nos odeiam quando falamos, e estamos há 200 anos livres de vocês. E só agora a conta está chegando. Imagina o que vai ser, quando as contas de Angola, e dos outros países libertos em 1975 chegarem. Nós, brasileiros, somos apenas o começo do memorial das suas atrocidades.

Não poderemos construir unidade, sem que vocês deixem de ser pequenos. E assumam, com grandeza, seus erros.

Se nós queremos, e podemos, construir um grande reino de liberdade, lusófono, amoroso, generoso, criativo, rico e eterno, nós precisamos que vocês peçam perdão. Vocês nos devem isso, vocês devem isso a História, isso é o decente a ser feito. Conosco, com todos. Então nós vamos virar essa página, e vamos construir algo inédito juntos.

Agradeçam a Deus, porque depois de tanta desgraça em séculos, a vingança veio por escrito.

Escritor e ativista social, nascido em Madureira, Rio de Janeiro. Em 2016 lançou Rio em Shamas, indicado ao Jabuti de 2017, pela Editora Objetiva. Foi roteirista na Rede Globo e Multishow/A Fábrica, colunista da Folha de São Paulo e Metrópoles.

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