A raiva do oprimido se chama justiça.

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Entrevista exclusiva, com Anielle Franco, Ed. 33 da Coluna de Terça

Por Anderson França. Fotos Bleia Campos.

Primeira vez que vi Anielle foi na Avenida Brasil. Foi a última vez que vi vários amigos de anos de luta na Maré. Era um protesto corajoso, que fechou metade da Brasil. Anielle estava lá. Eu sou muito na minha. Ela, estava vivendo todas as coisas ao mesmo tempo. E ainda parece estar neste momento. Eu tenho o prazer de entrevistar Anielle na Coluna de Terça, e deste ponto em diante, ela fala o que pensa, sem medos. Porque não ter medo é liberdade.

Anderson: Você está fazendo mestrado em que, Anielle? Anielle: Tô fazendo em relações etnico-raciais. Anderson: O que que é isso? Anielle: A gente estuda as raças, né, e toda a nossa luta do povo negro. O meu mestrado ele é focado no Instituto Marielle Franco, é Instituto Marielle Franco, legado e memória de Marielle. E aí eu tô fazendo um trabalho sobre essa fundação da Mari, esse impacto que tem o assassinato dela, perdão. O impacto que teve o assassinato dela é a fundação do instituto nas mulheres negras, do movimento de mulheres negras e favelas. E por aí vai. Anderson: O Carlão, um dos nossos colunistas, me falou que você estudou lá fora, nos Estados Unidos. Anielle: Sim, estudei. Anderson: Como é que foi essa parada? Onde você, o que que cê fez lá fora? Como foi isso? Anielle: Sim. Eu jogava vôlei aqui no Rio, comecei a jogar com oito anos de idade no Vasco, é e aí em determinado momento eu fui pro Botafogo jogar vôlei e no meu último ano de Botafogo eu tava com quinze pra dezesseis anos, eu tive uma proposta de ir pro Texas, jogar vôlei e estudar. E aí eu saio daqui ainda muito nova assim que acabou o ensino médio pra estudar num Junior College, no Texas. E eu fui pra ficar pouco tempo e tudo, acabei que fiquei bem mais tempo, e aí fiz a minha faculdade em jornalismo porque lá a gente tem a oportunidade de fazer o ‘major’ e o ‘minor ́ né? Cê deve saber melhor do que eu e aí eu fiz jornalismo e em inglês na faculdade, depois eu fiz também o mestrado na Flórida, em jornalismo e inglês. E aí eu volto pra cá em 2012. 2011, na verdade, 2012 e entro pra pra UERJ, pra fazer o reconhecimento, pegar uma outra faculdade. E hoje eu já tô num outro mestrado em relações etnico-raciais, mas esse tempo lá fora, foi basicamente pela bolsa esportiva, né? Eu fui jogando vôlei, então tinha bolsa de cem por cento, morava na faculdade, é, e o vôlei me proporcionou isso. Anderson: E e ao todo, você ficou quantos anos lá, mano? Anielle: Doze. Anderson: Mano, cê tem doze anos de Estados Unidos, é isso? Anielle: Sim. Anderson: Doze anos de Texas. Anielle: Não. É Texas, Carolina do Norte, Louisiana e Flórida. É isso aí. Foi dividido. Anderson: Tá. Texas, Carolina do Norte, Louisiana e Flórida, OK. Dessas cidades que você morou, na verdade cê chegou lá muito nova, você não sabia nem o que que de repente era, nos Estados Unidos, cê foi conhecendo no processo. Você chegou lá em que ano? Anielle: 2001 Anderson: e saiu de lá em 2013, né? Anielle: Doze. Anielle: É, mais ou menos 2012. Anderson: Praticamente já era o Lula todo, um pouco da Dilma. Na real, você vinha de tempos em tempos pra ver qual era, né? Anielle: Mas eu vinha no final do ano. Isso, eu vinha sempre no Natal e normalmente, eu vinha sempre no Natal, isso era o mais certo, alguns anos eu não vim no meio do ano, mas eu vinha no Natal, mas quando dava, eu vinha no meio do ano e no final do ano. Anderson: E mano, na em cada vinda que você veio, assim, doze anos, você via alguma coisa meio que mudar a cada vez que você vinha pra cá? Tipo, eu sei que quando cê sai em 2001, o Brasil era uma parada, 2012 ele já era uma outra parada, mas, né? Você, você tava vendo algum tipo de mudança na parada? Porque da onde eu tava eu via, mas eu não tava fora, tava dentro. Como é que era pra você, assim, todo ano chegar e o que que cê via? Anielle: Eu vi assim muitas mudanças, eu via muitas, na verdade, como eu fui muito nova e vinha e voltava muito nova, eu ficava muito em casa, né? Assim, a realidade era essa. Mas, as mudanças que eu mais tenho recordação, assim, são da minha família, tipo, da minha mãe, do pai, da minha irmã, da minha sobrinha crescendo, tal, a transformação da Marielle. Em relação ao que estava acontecendo no país. Eu não prestava muita atenção, mas não por não querer saber, mas porque eu tinha aquele choque cultural, porque afinal, eu vinha e voltava dos Estados Unidos e voltava pra minha favela, onde eu morava. Então, era aquela coisa do choque cultural mesmo de estar sempre naquela coisa do tipo, ah lá a gente deixa a porta aberta que não podemos, tá? Vamos ficar em casa, acompanhava noticiário, acompanhava os trabalhos dos meus pais, da minha irmã, mas não ia pra rua ou nada disso não, sabe? Então, assim, a memória que eu tenho dessas idas e vindas são mais do crescimento pessoal mesmo, tipo, meu, dividindo com eles e da Mari também.

Eu vi assim muitas mudanças, eu via muitas, na verdade, como eu fui muito nova e vinha e voltava muito nova, eu ficava muito em casa, né? Assim, a realidade era essa. Mas, as mudanças que eu mais tenho recordação, assim, são da minha família, tipo, da minha mãe, do pai, da minha irmã, da minha sobrinha crescendo, tal, a transformação da Marielle.

Anderson: Alexandre tá me ouvindo, Alexandre. Anielle: Oi, Alê, tudo bom?

Alexandre: Sim, claro. Tudo bem.

Anderson: A Ana entrou aí, viu? Ô, Ana. Você pode ligar tua câmera, por favor, porque eu mesmo ainda não olhei pra tua cara, desde dois dias que cê entrou lá na coluna, né? Muito obrigado. Que bom, é gente, vamos lá, tô seguindo aqui com a Aniele. Então, nessas idas e vindas, Ani, você percebeu que a Mari tava já tava na política, não tava, eu lembro de algumas partes. De uma parada um pouco, mas já era 2008, mais ou menos. Mas vocês chegavam a trocar uma ideia, subir, só uma trocava contigo, como é que foi essa parada? Anielle: Então, a gente trocava sobre muitas coisas, a gente sempre trocou, a gente sempre foi muito parceira. É, em relação aos próximos passo que ela viria fazer, a gente também é se disponibilizava, né? A ter essa divisão de, de sentimentos, angústias, enfim. Quando eu encerro o meu segundo grau, meu ensino médio eu apresento a Marielle ao Freixo, né? Então, o Marcelo Freixo ele foi meu professor do ensino médio, de primeiro ao terceiro ano. E a Mari só começa a trabalhar com ele e entra nesse mundo por conta disso, de um debate que nós tivemos. No Odeon e aí a Mari faz uma fala e tudo. É, também depois do CEASM, mas também teve um no Odeon. O primeiro, primeiro mesmo. E aí, ela começa a ir a trilhar o próprio caminho dela, sabe?

Anderson: O primeiro foi lá no CEASM. Anielle: Então, eu tenho uma, a gente sempre tava debatendo isso aqui. Eu acho que o primeiro foi no Odeon, na verdade.

Anderson: Tá. Anielle: E depois, o segundo foi no CEASM. Eu tenho um sentimento que foi isso, mas pode ter sido ao contrário também.

Anderson: Tá. Anielle: Mas teve O CEASM que foi onde eles fecharam mais acordo e tal. Mas teve um outro no Odeon.

Anderson: Eu lembro que a gente fez um TEDX lá no CEASM, que foi até hoje, foi o último, o único TEDX feito pela favela, que foi o TEDX Maré, que a gente levou a Cecília, que na época trabalhava no Observatório, levou Fernando Henrique, levou gente da UPP, levou traficante, levou ex-traficante, levamos o Léo Lima. Levamos o Raull Santiago, Raull que é um cara que eu conheço desde o tempo que eu tava no Afro Reggae, o Raull falou.

A Mayara Donaria, ela falou nesse TEDX Maré que que a gente fez. Anielle: É, Mayara trabalha com a gente no instituto hoje.

Anderson: Boto fé. A Mayara a gente fez juntos, a gente cursou lá no Observatório de Favelas, aí eu abri um projeto na vila do João, chamado Dharma, que era uma agência de comunicação, que a gente tava tentando fazer dentro da maré e a Mayara colou com mais duas pessoas e ela sempre foi muito, ela era muito nova, muito nova, mas já era agulhada pra caralho. E aí, porque ela era muito agulhada e falava muito bem, quando a gente fez o TEDX de 2013, a gente chamou ela pra falar. E foi foda assim, lotou, porque tinha um ex-Presidente da República e tinha Maiara com dezessete anos falando. Então, tipo, foi uma época muito boa e o pessoal do CEASM recebeu a gente e tal. E talvez você não tenha ouvido falar desse TEDX, porque a própria comunidade do TEDX não, não divulga, porque a gente não pediu apoio a eles, quando a gente pediu eles não queriam que fosse na maré. Eles diziam que não ia dar pra levar um Presidente lá, eles diziam que, tipo, e a nossa pauta era um pouco racial, sabe? Não era tanto, mas a gente ainda tava batendo forte. Então, acabou que não foi muito divulgado, mas lotou e até hoje é o único em favela. Anielle: Já tinha escutado falar sim, do TEDxMaré, foi mesmo no CEASM.

Anderson: Se você pudesse voltar no tempo agora, mano, na hora que cê apresentou o Freixo pra ela, se você pudesse voltar no tempo, cê apresentaria de novo? Anielle: Apresentaria, naquela época, eu apresentaria sim. Eu teria feito algumas decisões diferentes porque eu acho que a Mari ela iria pro lugar dela independente do Freixo ou não. Eu acho que ela é muito maior do que qualquer partido e qualquer outra pessoa que venha a pensar diferente ou igual a ela. Mas, porque é isso, é coisa de irmã, né? É, mas eu apresentaria sim, eu tinha um carinho muito grande pelo Marcelo, 2001, 2002, 2003, porque ele trazia esperança praquela escola, né? Era uma escola particular, no qual eu era uma das poucas minas pretas e ele falava coisas que eu precisava ouvir no meu ensino médio. Então, eu apresentaria sim, eu acho que a única coisa que eu faria diferente, se eu pudesse voltar no tempo mesmo, foi quando em 2016 ela decidiu se candidatar e ela tem esse papo, essa conversa primeiro comigo, com a minha mãe, com meu pai, com a Luiara e a gente, eu falei que apoiaria e tal, mas a minha mãe falou que não gostaria. Mãe é foda, né? E mãe fala, né? Mãe fala, cara, eu não quero que você vá, eu não quero, eu não acho que esse é o caminho e tal. Minha mãe foi contra mesmo. Então, assim, se eu pudesse voltar o tempo, eu tinha insistido um pouco mais, porque ela ficou muito bambeada se ela iria ou não, com a fala da minha mãe, com a fala de algumas outras amigas que não queriam que ela fosse. Mas eu me mantive, porque era a irmã mais nova, é isso, eu falava, não, vamo, eu tô contigo e tal, no que você achar melhor. Mas, se eu pudesse voltar ao tempo, eu falaria pra ela não entrar. Falaria outras coisas também, mas assim, eu falaria de 2016 pra cá, sabe? Porque até ela, ela escolher se candidatar, a gente tinha uma visão diferente de muitas outras pessoas. Foi ela se candidatar que a coisa mudou, assim. Então, acho que eu voltaria nesse tempo, sabe? Anteriormente a isso não, acho que não, acho que naquela época precisaria e manteria a minha posição.

Anderson: Anielle, quando você chega lá nos Estados Unidos, e é uma escola de pessoas negras, você já chegou lá se dando conta que era preta ou você se deu conta disso antes? Anielle: Não, eu me dei conta disso antes, eu tive uma mãe, tenho né, uma mãe e tinha minha irmã, minhas avós e minhas tias que falavam isso pra gente desde pequena. Então, o meu processo de racialização, vamos dizer assim, já começou desde muito nova, desde quando eu comecei a jogar vôlei, onde eu ia pro Botafogo e via, né? Tipo, no meu inimigo oculto, as minhas amigas de time me davam um pote enorme, de um quilo de um litro de creme, me davam bombril, assim. E aí eu chegava em casa e não entendia muito aquilo ainda e tal, mas a minha irmã conversava muito comigo. Eu venho de uma família de mulheres, onde as mulheres falam muito o que elas pensam e agem quando elas querem agir. Então, minha mãe falava muito “Não basta ser só preta e favelada tem que ser a melhor, né?” Então, a gente cresce estudando, a gente cresce com isso. Então, quando eu chego nos Estados Unidos, eu já chego com essa visão também. Passo por um processo de aceitação do cabelo, aceitação do nariz, do rosto, do corpo, enfim. Ainda aqui no Brasil ainda muito nova, ainda muito pirralha, é muito mais por ter que dar conta da minha vida que era sair da Maré pra jogar vôlei no Botafogo, lá na General Severiano sozinha, com a minha irmã às vezes ajudando e tal, o meu pai e até a própria mãe. Então, já tinha essa consciência, assim. E o meu ensino médio, ali, foi onde isso tudo cresce e eu vou conhecendo pensadores, intelectuais, enfim, até chegar nos Estados Unidos e aí me assumir de vez mesmo porque aí tinha outra pegada, era uma coisa muito mais forte. Eu só estudei em colégios aí de PCU, que são colégios historicamente negros, pessoas negras, onde tinham mais de 80% de negros e imigrantes. Então, vem um pouco disso aí tudo.

Anderson: Como é que é estudar numa escola? Então, uma escola racialista, uma escola da galera preta ou imigrante. Como é que é isso? Como é, como é que é isso? A gente não tem isso no Brasil, isso é foda. E se a gente propor isso no Brasil, eu acho que eles matam a gente, mas como é que é isso? Cê viveu isso. Anielle: É muito foda assim, é uma coisa, é um, eu hoje sou o que sou, por todas as experiências também que eu passei nesses 12 anos lá. Eu acho que é extremamente importante a gente tem acesso a coisas que, sei lá, eu jamais imaginei ter. Eu fazia parte de um coletivo chamado One Hundred Black Women, né? Que eram Cem Mulheres Negras. E aí foram cem mulheres fundadoras que elas iam de faculdade em faculdade, é, em todo o estado da Carolina do Norte, naquela época, pra debater sobre a potencialidade das mulheres negras em Carolina do Norte. Então, isso era muito lindo, assim, todo mês tinha uma palestra com alguém, sabe? Tipo, na minha formatura em 2009, Obama passa lá pra fazer um discurso e tal, ele não foi o convidado principal, mas ele passou na semana da formatura. Então, assim, pra mim, hoje, com o entendimento de vida que eu tenho e com uma experiência que eu pude juntar e agregar do que vinha acontecendo na minha vida anteriormente aos Estados Unidos, foi perfeito. É uma sensação de que as pessoas te conhecem, te entendem, sabe? Que você não tá sozinha.

Eu venho de uma família de mulheres, onde as mulheres falam muito o que elas pensam e agem quando elas querem agir. Então, minha mãe falava muito “Não basta ser só preta e favelada tem que ser a melhor, né?” Então, a gente cresce estudando, a gente cresce com isso.

Anderson: Anielle, vamos falar de raiva? Anielle: Vamos.

Anderson: lá fora, com essas instituições organizadas e organizando a raiva, né, as escolas, as universidades negras, os pensadores, os ativistas, as pessoas que botam o dedo na cara da sociedade branca americana e tal. A raiva, ela é legítima, ela é organizada e ninguém condena a raiva. No Brasil, você levanta a mão e fala, pera, aí vagabundo já tá numa de te enquadrar, dizer que você é agressiva, que você é violenta, que dá pra lutar duas lutas, que não é bem assim, tal, não sei o que. A galera te chama de raivosa? Anielle: Muito. Muito. É, desde que mataram a Marielle, quando eu começava a apontar coisas, eu acho que não tão diretas quanto as que você falou agora da sua opinião pessoal, porque isso, a gente tinha um lugar ali do respeito e tal, da tropa, com algumas pessoas, até então, naquele momento, no partido e para com o partido também. Tinham coisas que a gente falava, que apontava e tal, tem um vídeo meu do Mídia Ninja na Bahia, que foi o único vídeo meu, acho que passou de um milhão de visualizações, que é onde eu falo, né? Tipo, me mandaram embora de três escolas em 2018, alegando que eu era irmã da Marielle. E não foi o partido de esquerda branco que me estendeu a mão, nem a bonitinha branca, quem me estendeu a mão mesmo foram as mulheres negras que me chamam e falam, olha, tem um edital aqui, vamos abrir o instituto, vamos conversar. Então, desde esse dia em diante, 2018 pra cá, até então, eu era a irmã da Mari, OK, pacífica e tal, legal, bonitinha e tudo mais. Depois disso, eu virei a raivosa mesmo mesmo, porque eu comecei a apontar erros, tais como o que você citou. Mas eu não dava nomes, né? Eu só, eu soltava. Eu não dava nomes porque bem ou mal a minha irmã participou do partido e tal, não só isso. E bem ao mal, tinha pessoas ainda tem algumas poucas pessoas que eu considero e tem um carinho, mas eu não me incomodo não, Anderson, de ser a raivosa, porque eu sou mesmo, eu sou bem barraqueira, não consigo guardar sentimento, eu falo o que eu quero, eu não escondo quando eu não gosto, eu. Não tô afim de agradar ninguém, porque eles não pagam as minhas contas e muito menos, eles tão colocando de comida na minha casa. Então, se fosse isso, se eu fosse, sim, uma vereadora eleita como a minha irmã, foi, tudo bem. Eu me calaria e falaria, poxa, eu não posso errar e botar, assim como a Mari também engoliu muita coisa. Quantas e quantas vezes a Marielle chegava pra gente chorando, puta da vida porque queria fazer uma coisa e não deixavam. Porque queria ir por um caminho e não permitiam, porque não aceitavam que, né, que estudante fosse maior do que o professor, por exemplo. Eram ditados que eu já tinha escutado. Mas eu não sou obrigado a isso. né? Então, por isso que a gente hoje tá no instituto, por isso que a gente cria o instituto, por isso que estar à frente como diretora pra mim é importante porque é óbvio que tem ali um posicionamento que a gente tem que ter, porque é o nome da minha irmã, eu não posso decepcionar, toda vez que eu falo e penso alguma coisa, é eu não posso ser igual aqueles que eu critico. Então eu procuro manter uma postura sensata, uma postura real, que é o que a gente da família é e tem, mas eu não sou de ferro. Então quando é pra eu chegar e falar o que eu não gosto também, pode ser em entrelinhas, eu falo. Assim, eu tenho, tive muito isso em 2018, continuo tendo, mas sim pra responder, sou a barraqueira problemática, é afrocentrada como eles dizem.

Anderson: E você acha, porque essa galera tem o poder do território político. Essa galera tem sempre o poder, né, bicho? A disputa eu acho que, eu acho que no Brasil, a galera preta precisa começar a disputar poder. Porque um poder só respeita outro poder. Então, enquanto a nossa disputa foi entre a gente mesmo, quem é mais preto, quem é mais branco, quem usa turbante, quem não usa turbante, quem pode falar isso, quem pode falar aquilo. A gente vai ficar dando volta, assim, mas a gente tem que começar a disputar poder com esse pessoal. Porque, por exemplo, você pega e fala o que cê fala. Essa galera do Jardim Botânico, eles têm poder, eles têm poder nas redes, eles têm poder. Quando eu falo de rede de pessoas, eles podem abrir e fechar portas e tal e te boicotar. Mesmo que esse boicote não seja concreto e a gente não consiga ver, você internamente sente que há um fechamento de portas pras coisas que você quer propor, pelo fato de você falar as coisas que você fala? Tá, pelo fato de tu mandar o papo. Mesmo que não seja direto assim, você acha que internamente a galera meio que te boicota, fecha a porta pra tu não alavancar teus projetos, não te convida pros barato, morou? Tu sente que isso ruim? Não, não que isso seja provável, mas mas tu sente isso? Anielle: muito, muito, acho que não só a mim como a minha mãe, minha sobrinha, meu pai, a gente falava muito sobre isso, assim. Isso também, tô só aproveitando o gancho, também, um dos motivos pelo qual a gente cria o instituto pra se legitimar enquanto família da Mari. Porque era isso, a gente não agradava porque a gente não falava e não seguia o que as pessoas queriam que fizéssemos. Por exemplo, 2020 a gente não queria apoiar diretamente nenhum candidato a vereança, porque a gente queria fazer com que as fizessem falar, a Marielle ia fazer. Então, a gente cria a agenda Marielle Franco. O que era a agenda Marielle Franco: era o trabalho dela inteiro, sintetizado num documento, criado por nós. Nós ouvimos todos os trabalhos dela, dos discursos, enfim, e aí criamos a agenda. Porque as pessoas queriam falar, chegou campanha, beleza, “ê, Marielle Presente”, estampar o rosto dela no adesivo e mandar a família tirar foto. Como nós, ingenuamente, fizemos em 2018. Eu falei, cara, dessa vez não, porque agora a gente tá o que? Cobra mordida, cobra criada, não vamos fazer. E aí criamos a agenda no intuito das pessoas se comprometerem. Foram, não todas as pessoas se comprometeram do partido, sabe? Começa por aí. E ela era aberta pra qualquer pessoa, qualquer gênero, raça, classe, qualquer pessoa. E muita gente não quis. Então, assim, é complicado isso. A gente sente esse boicote, sim. Depois do instituto ele ficou mais difícil boicotar a gente, porque a gente acaba que ganha um espaço legítimo na sociedade. Então, as pessoas olham e falam, pô, vou seguir o instituto, vou falar com a família. Ah, tem uma palestra, tem uma obra de arte que eu quero doar, tem isso, isso, isso, isso e aquilo. Então, a gente tá num lugar hoje que eles respeitam mais, mas sim, já tiveram vários prêmios, por exemplo, na Câmara dos Deputados Federais em Brasília que a gente não foi convidado. Pessoal tava recebendo homenagem pela Marielle, a gente não foi convidada, assim, tipo, ah, tem uma fala, não sei o que, de um lançamento, não sei o que, da puta que pariu, minha mãe não foi convidada, tipo, porque eu não me incomodo. Agora, o que eu acho mais absurdo dos absurdos é a minha mãe e a minha sobrinha, porque tem gente que não sabe nem que a Mari tem filha. Do mesmo jeito que você falou no começo, que as pessoas não sabem que a Mari tem irmã. E também pra mim não me incomoda isso, me incomoda quando acham que ela era filha de chocadeira ou quando ela não tinha uma filha assim, porque não é, né? Então, isso mais me incomoda, tipo, elas duas, pra mim, seriam o ponto chave, primordial.

O papel do instituto, hoje, ele é potencializar, inspirar e fazer com que essas outras mulheres que acreditam, que se espelham na Mari, se espelham em mim hoje em dia, algumas, entendam que a gente pode ser tudo que a gente quiser e que a gente não depende de ser assassinada pra que isso aconteça, é o que eu espero.

Anderson: Então, só vou fazer a minha, abrir o meu parêntese aqui pra dizer o seguinte, é que as pessoas acham que a Marielle só tinha esposa, isso me incomoda muito. Não tenho nada contra ninguém, veja só, contra ninguém, nada contra ninguém, mas acho que esse tipo de coisa do jeito que foi feito e eu ouvi muita coisa de muita gente na época. Pra mim ficou nítido que tava rolando uma predileção por um caminho e por uma narrativa num apagamento de uma outra narrativa. Por isso que a gente quando teve a questão lá da Maré que fecharam a Brasil e fizeram a passeata, eu tava lá. E eu te vi lá, a primeira vez que eu te vi que foi lá. E eu tava conversando com Molon, na época, Molon, não sei porque falou comigo, um monte de coisa: “Pô, cara, e aí, como é que cê tá?” Num sei o que. E eu fiquei te olhando, eu fiquei, cara, aquela mulher, eu tenho que conversar com aquela mulher e tal, eu preciso falar com aquela mulher, mano, como é que eu vou chegar naquela mulher, ela deve ficar com a cabeça mil, deve tá uma porrada de coisa soterrando ela. E eu fui embora e acabei não falando com contigo, mas eu sempre achei que alguém nesse lugar, nessa cidade, decidiu optar por uma narrativa pra moldar essa figura da Marielle segundo uma narrativa que agrade, um partido que agrade uma determinada classe econômica, social, etcétera e acaba, sinceramente, pra mim, é deliberadamente apagando uma outra coisa, pra mim não existe vácuo na relação racial. Pra mim, a escolha de uma de uma narrativa foi deliberada. Então, aqui eu não tô nem usando nome, nem nada, mas é isso, eu nunca, inclusive, eu posso escrever sobre Freixo, eu não escrevo sobre Mônica. Mas, pra mim, o que acontece é isso, e quando você lá atrás se posiciona, é, eu lembro que até a Lelê falou comigo, ela me mandou um link e tal, tem a questão do show que vocês foram, com artista internacional, chamou, lembrou e tal, disse, isso é foda. Agora a gente tá colocando foco no lugar que o foco tem que tá, que aqui se perdeu uma filha, aqui se perdeu uma mãe, a que se perdeu uma, entende? Uma irmã. Então, é esse lugar aqui. É, eu só queria só, só pontuar essa outra parada. Eu não posso mesmo falar, cê acha que eu falo as coisas, mano? Cê não tem noção o quanto de coisa eu gostaria de falar e que eu não posso, mas vamos falar do instituto e caminha aí pra esse. Anielle: Só pra te falar que eu concordo, Anderson, rapidinho, assim, desculpa te interromper, mas eu concordo super, eu acho que tem a narrativa dessa galera que é a narrativa na qual mais favorece. Então, se essa narrativa me favorece, essa narrativa é pela qual eu vou. Num é, num é importante pra mim, num é lucro, num é bom ter uma mina preta falando que tá usando a imagem da Mari pra gente, a gente quer alguém que compre a ideia de que a imagem tá sendo usada, mas que a imagem pode ser usada. Então, isso pra eles não era interessante. Tanto que hoje a relação que a gente tem com o partido, com o Marcelo, eu continuo tendo muito carinho pelo Freixo porque é isso, ele foi meu professor. Então, né? A gente tem essa relação e tal, mas hoje eu consigo chegar pra ele e falar assim: “olha, eu não gostei do que você falou. Não tira o que você fez. Isso aqui tinha que ser racializado, você tá fazendo merda”. Hoje eu posso falar isso, porque eu tenho essa intimidade com ele pra falar isso. E talvez seja uma das únicas pessoas de todo o partido no qual eu consigo ter esse tipo de diálogo, porque assim, eu não tenho amizades no partido. Eu não sei quem foi a última deputada eleita que mandou a mensagem pra minha mãe ou pra Luiara pra dizer assim: “como você está? Mandam todo dia 14: “Força”. A Luiara hoje trabalha com a Renata. Então, assim, a Renata é uma exceção, mas de quem chega e fala, poxa, vamos cuidar da família e tal. Vamos, entendeu? Então, assim, isso pra mim é complicado porque eu não sou assim. Porque se a minha irmã tivesse viva, minha irmã não faria isso. Se a Marielle tivesse sido a pessoa que tivesse ficado viva e qualquer uma delas tivesse sido assassinadas, a minha irmã eu tenho certeza pela criação que eu tive, que eu boto minha mão no fogo, que a gente taria hoje cuidando dessa família, seja como for, seja o básico do básico, foda- se, tipo, eu vou levar uma cesta básica por mês, não quero saber, já é um gesto de carinho, eu não tô nem aí, sabe? Tipo, todo mundo soube que eu fui mandada embora de três escolas em 2018. Não por capricho, porque eu trabalhava em cinco escolas pra me manter com salário de três mil reais, como professora de inglês. E ninguém chegou e falou assim, “Pô, não, vamos ajudar essa menina. Será que a gente não consegue ajudar ela?” Não, as pessoas queriam a gente pra falar, campanhas, lançamentos de campanha, lançamento disso aqui da puta que pariu, mas não queria a gente pra fazer algumas outras coisas porque a gente não compactuava com algumas coisas, entendeu? Tipo com algumas situações. Mas é isso, assim. Então, hoje, a gente aprende a lidar um pouco com isso também se impondo e com o pé na porta dizendo não. Aqui também tem uma família que vai se impor e vai falar, você querendo ou não. Então, hoje quando a gente tem alguma coisa pra fazer seja através do instituto, ou seja, através das minhas próprias redes, a gente vai lá, pega o telefone e liga pra algum repórter pra algum jornal e fala: “olha, tá acontecendo isso, isso e isso, tal. A gente quer falar isso, isso, isso.” E a gente faz, porque se eu vou ficar dependendo de uma esquerda branca que às vezes vira e me da as costas, eu não vou a lugar nenhum. E eu repito, foram as mulheres negras de movimentos de mulheres pretas como Jurema, Lúcia que chegaram pra mim e falaram: “vamos conversar?” Sabe? Meninas como a Marcele, de favela, que eu sento na Crioula e falo, cara, queria fazer um festival pra minha irmã março de 2019. Foi feito com mulher preta. A gente sentou no chão de Crioula trinta mulheres negras, a gente fez o festival com mais de cinco mil pessoas ali na câmara, ali em frente. E deu certo. Assim, tiveram doações mínimas do partido, não fez falta porra nenhuma, mas a gente fez, porque é isso que mulher preta faz, a gente senta, pega, mete a mão na parada e faz. E é isso que eles vão ter que engolir, aturar, porque a gente tá só crescendo, sabe? Com eles ou não a gente vai fazer. E é isso que eu falo muito pra eles, e eles não gostam. Vou fazer com o pé na porta ou não. E é por isso que vem as cantadas do tipo: “você vem em 2022, você vem?” Quando eu venho não interessa, sei nem se eu venho algum dia. Mas o que eu quero agora é consolidar um instituto e fazer com que as pessoas entendam que essa é toda, todo esse protagonismo no preto, ele tem que existir agora, não tem que esperar a minha irmã tomar cinco tiros na cabeça pra querer falar de mulher preta depois. Então isso eu não vou aceitar mais, sabe? Anderson: O instituto ele foi fundado em 2018? Anielle: Sim, a parte burocrática, né? Mesmo, porque ele foi pensado, tipo, CNPJ e tal, mas ele só foi pensado mesmo a partir de 2019 lá pro final do ano. Anderson: OK, qual é o principal objetivo do instituto? Anielle: Sim, hoje a gente tem quatro pilares onde a gente se baseia muito, que é: Lutar por justiça, regar as sementes… Lutar por justiça, regar as sementes, multiplicar o legado e… olha eu, gente, falei várias vezes fui parar, esqueci. Multiplicar o legado, lutar por justiça e defender a memória. E aí, o que que são esses quatro pilares? Os quatro pilares, Dinho, são baseados em tudo que a gente já fazia em 2018 e fazia em 2019. Por exemplo, defender a memória. Porra, eu ia pro pau na internet discutir sobre fakenews sobre a minha irmã e ficava madrugadas e madrugadas virando aqui, é isso. O regar as sementes e espalhar o legado tão ali muito concentrados e juntos em tudo que a gente faz: no papo franco, nas escolas Marielles, no centro de memória e ancestralidade. Em várias coisas que a gente tá criando e tem feito na agenda, na pesquisa de violência política, enfim. E essa coisa do multiplicar né? Dessa luta toda, vem também de tudo que a gente já fazia, de palestras, de viagens, enfim. É, hoje a gente tem nossas visões, a nossa missão, visão e valores que todas passam por potencializar, inspirar mulheres negras de favela, LGBTQI+, no sentido de que a gente vai fazer do “Falar Marielle”, ao de fato, a concretude de fazer. Então, assim, tudo é muito bem pensado. A equipe hoje são sete pessoas, só temos duas pessoas brancas. Então, assim, tudo isso, até isso, assim, desde esse início até o final é extremamente calculado pra onde a gente possa estar no lugar onde as pessoas olham e falem: “Poxa, não, ali a gente conhece a Marielle além da vereadora.” Eu não tô aqui pra falar só que a Marielle era vereadora bissexual. É óbvio que isso é superimportante, porra, uma votação expressiva, um posicionamento que ela tinha. Mas eu quero ir além, eu quero que as pessoas saibam quem que foi essa árvore que deu esse fruto que é a Marielle, sabe? Eu quero que entendam qual é a nossa raiz, de favela, de ter uma mãe que copiava livro pra gente estudar, de ter uma mãe que quando ficou desempregada tava ali fazendo vários outros trabalhos de vender sacolé na feira, de vender roupa pra eu poder ir pros Estados Unidos estudar. Então as pessoas não sabem disso. Então, assim, esse é o papel do instituto hoje, o papel do instituto, hoje, ele é potencializar, inspirar e fazer com que essas outras mulheres que acreditam, que se espelham na Mari, se espelham em mim hoje em dia, algumas, entendam que a gente pode ser tudo que a gente quiser e que a gente não depende de ser assassinada pra que isso aconteça, é o que eu espero. Então assim, eu tentei resumir muito. Desculpa se eu falei muito truncado. Anderson: Quem tá contigo hoje? Quem são essas pessoas que tão contigo? Anielle: A Mayara, ela é assistente de comunicação, junto com a Luna, que trabalhou com a Mari, na mandata da Mari, Luna Costa. A Marcele, ela é coordenadora de incidência, Marcelle Decothé, te conhece também. Como, com a Fabiana, que é do Mulheres Negras Decidem aí veio entrar com a gente. É o Rafael Rezende que era da mandata da Mari que tá na parte e projeto ali, junto com a Raiane na sustentabilidade. Aí, eu venho enquanto diretora executiva, meus pais vêm no Conselho Diretor político e a gente tem um conselho consultivo político que tá sendo montado esse ano agora. Como Suely Carneiro, Bianca Santana, Jurema, Lúcia e por enquanto só tem acho que esses quatro nomes, as mulheres.

Anderson: OK. É, as ações pra esse ano foram prejudicadas por conta de, pergunto das ações esse ano, tô querendo perguntar com relação a captação de recurso e investimento social no instituto. Cê acha que foi prejudicado por conta da pandemia? Anielle: Sim, nós fomos um pouco, mas a gente tinha financiamentos do ano passado que a gente não usou, né, por conta da pandemia e aí a gente tá realocando, né? Porque ano passado a nossa chave foi virada toda pra ajudar a galera de favela por conta da pandemia, então foi distribuição de cestas, distribuição de material higiênico. As únicas coisas que nós fizemos pro instituto mesmo, assim, foram a foi a agenda, né, a Pane e a pesquisa de violência política. E aí esse ano a gente tá tentando se reorganizar pra poder dar conta dos projetos, que aí começa o Papo Franco, que é uma série de entrevistas gravadas, tem escolas Marielle, que a gente tá pensando a metodologia, tem o senso de ancestralidade, memória que a gente tá tentando aí construir a nossa metodologia, tem um arquivo digital inteiro, um acervo digital que a gente tá fazendo, então a gente tá criando aí vários arquivos da Mari, tem muita coisa sendo feita esse ano.

Anderson: OK. Como tua família tá se mantendo, como você tá se mantendo? Anielle: Então, hoje eu sou professora, né? Dou aula aqui numa escola aqui do lado, meus pais estão aposentados, então assim que eles se mantém. A gente hoje tem mais segue trabalhando sim. É, eu tenho um salário enquanto diretora e tenho meu salário de professora. E vira e mexe, eu dou aula particular de inglês também, pra suprir uma coisa ou outra. E é isso.

Anderson: Como você tá? Essa pergunta que eu faço pra todo mundo no final, porque ah, quando eu tava trabalhando aí, eu levei ao todo onze anos até conseguir fazer a Universidade da Correria. Fiz a UC por 5 anos. Bom, o projeto começou na Kelson e a gente vendia camiseta pra dar aula. Deu certo. A gente conseguiu formar quatro mil pessoas, etcétera. Mas quando eu cheguei no final do processo, eu tava pesando 130 quilos e tava com diabetes. E quase tive um AVC. Então, a pergunta que eu faço pra todo mundo, seja pro Mano Brow que a gente conversou um tempo desses, Preto Zezé, pra gente que tá no fronte dessa guerra, que como a gente tá se cuidando? Então, eu vou jogar isso pra você. Eu acho que cê trabalha muito, assim, pelo que eu já entendi, você trabalha muito. Existe um glamour, assim, sobre trabalhar muito no Brasil quando na verdade isso é bem problemático quando se fala de uma pessoa que vem de periferia porque é uma pessoa negra que só conhece o trabalhar muito na vida dela. É, e você tá trabalhando muito por algumas propostas, algumas pessoais, algumas ideológicas, mas sai da persona Anielle agora e fala, como é que tu tá se cuidando. Anielle: Bom, eu tenho sim os meus momentos de cuidado. Trabalho pra caramba, mas eu tenho conseguido dividir o meu tempo porque eu tenho duas meninas, né? Uma de 10 meses e uma de 5 anos. É, eu não me abandono, não abandono a Anielle, então eu continuo jogando vôlei, eu vou a missa, eu vou a macumba quando eu tenho que ir, eu faço minhas oferendas, eu faço de tudo um pouco, as minhas rezas, tô sempre com a minha família, tenho meus momentos também com meu companheiro. Eu procuro me cuidar de uma maneira na qual eu não enlouqueça, porque se a gente for ficar só trabalhando e só sentindo raiva, porque como você bem disse, como também Audre Lorde diz: a raiva me move. Esse racismo todo também me move, mas ao mesmo tempo, eu sou humana, né? E eu preciso dos meus momentos, assim. Uma coisa que muito funciona é o meu vôlei, sabe? Tipo, eu não largo, não abro mão de jogar, jogo desde oito anos, é, o vôlei e ir pra academia, correr ou correr aqui em baixo, seja o que for e tá com os meus, assim, tipo, a coisa apertou, vamos fazer o almoço em família, aí vem todo mundo pra cá, vai todo mundo pra minha mãe ou pra sobrinha e a gente faz. Faço terapia também. O que você imaginar. Aqui tem a minha vela acesa, aí tem uma espiga de milho aqui na casa pra dar prosperidade, aí tem uma espada de São Jorge, tem várias santas católicas, que é a nossa formação, a nossa religião, ela a gente cresceu ali na igreja, então a gente sempre vai, mas assim, como eu é… Essa coisa da Mari me possibilitou muitas coisas, inclusive acesso a muitas mães de santo que eu sempre admirei e só agora eu pude conhecer, porque a gente tem que jogar com as armas que tem. As pessoas mandavam de lá a gente se protegia daqui de todos os lados. Então, é isso. Quando a gente sai, sai com algodãozinho no umbigo pra proteger e vamos que vamos, tá? É mais ou menos um pouco disso.

Alexandre: Nossa, eu queria entrar, eu queria entrar nesse tema aí. Então, olha, eu sempre pensei numa coisa que eu acho uma das maiores injustiças que vem junto com as mazelas do racismo e da vida da população preta no Brasil, que é a falta do direito a leveza, sobretudo quanto mais você se engaja e se conscientiza do tamanho da luta que você tem que empreender não só pra sobreviver, mas pra transformar o mundo. Eu sempre me pergunto qual é o espaço da leveza e como é que se constrói isso, né? Porque a princípio pode, por exemplo da, eu tô falando agora que hipotetizando como psicólogo, tá Anielle? Se tiver falando alguma coisa que num tem a ver com o seu mundo, você me diga. Por exemplo, pode gerar até uma culpa em ter espaços de genuína fruição da leveza. Assim, agora, nesse momento, eu não sou a irmã da Marielle, eu não sou a diretora do instituto, eu não sou de uma família marcada pela tragédia. Eu sou uma pessoa que está vivendo um momento de rara e importante leveza. Eu queria entender como é que isso acontece na sua vida. Anielle: Alê, você sabe que eu te admiro a beça, você pode falar o que quiser. É muito difícil.

Alexandre: Muito obrigado. Agora eu não vou nem dormir. Anielle: É muito difícil pra mim. Eu te confesso que não é fácil. Assim, tipo, não é fácil mesmo, porque dificilmente as pessoas me deixam esquecer, né? Não que eu quisesse. Eu não quero não, mas assim, me deixam passar batido por um lugar e falar assim: “ai, irmã da Marielle”, tem muito disso. Mas, eu cheguei num momento que, por exemplo, quando eu fui mandada embora dessas três escolas que eu comentei aqui, eu fiquei em duas escolas que eu acabei pedindo demissão depois delas. Mas essas escolas me tratavam muito mal, tratavam de uma maneira assim: eu passava pra chegar na escola, os pais dos alunos nos cuspiam no chão, tá? Cuspiam no chão, olharam pra mim e cuspiam no chão, procê ter uma ideia. Os alunos chegavam na sala e falavam assim, “Cê num acha que a esquerda tem que morrer, professora?” Porque deviam ouvir dos pais falando isso, né? Eu vivi isso. E isso me enlouquecia de uma tal maneira e eu achava que eu ia conseguir passar por isso tudo sem fazer uma terapia, eu ia conseguir passar por esse tipo assim: “ah, eu vou desligar o telefone e vou dormir hoje”. Não, isso não existia. Eu precisava do meu momento, eu precisei me forçar, tipo, 5 minutos por dia pra parar e respirar. Tipo assim, sem pegar o telefone, sem olhar o email, sem imaginar, sem sentir raiva, de nada. Eu fui, foi um trabalho duro com a minha psicóloga, assim, chegou um momento que eu tive, eu fiquei com duas psicólogas, uma que era mais povão como eu, assim, e outra que era mais reservada que me captava mais, que fazia eu pensar mais, sabe? Então, eu fiquei por um momento com aquilo. Teve um momento que eu, eu engravidei da Eloá em 2019, então, eu não tava jogando, porque eu tive um descolamento, eu quase perdi a Eloá, tava 80% de descolamento, né?

Alexandre: Nossa, você fez cerclagem? Anielle: Não, eu tomei remédio, é, e fiquei deitada, de repouso geral. E aí, deu certo, ela tá aqui, dez meses linda, maravilhosa, mas assim esse período pra mim foi o período que eu mais consegui me acalmar, porque eu precisava me acalmar. Todo mundo falou: “ou você vai se acalmar, vai ficar quieta, sossegar a bunda em casa, deitada ou você vai perder a menina”. E aí, foi um outro estalo, assim. Então, é muito difícil pra mim, Alê, é muito difícil.l Eu relutava até na questão da religião, porque a minha mãe criou a gente indo só à igreja católica, mas eu sempre tive aquela curiosidade de conhecer, de entender, de tá junto, de o batuque mexia comigo, eu queria saber, eu queria jogar, eu queria. Até nisso. E aí eu falei, cara, não, eu não vou mais negar as coisas que eu tenho curiosidade, as coisas que as pessoas tão me pedindo pra falar. Então, eu preciso estudar, eu preciso tá dentro pra saber o que que eu tô falando ali, porque é do meu povo, sabe? E foi um chamado ancestral muito forte pra eu começar a entender e participar. Foi muito forte, muito forte. Eu sonhava, eu via coisa, eu escutava, eu via a minha irmã no sofá me mandando ir, entendeu? E a Mari ia. Assim, a primeira vez que eu fui jogar o pai de santo falou assim, olha, eu não consigo ver, porque você tá toda de Marielle, você, eu só tô vendo a Marielle aqui, não tô vendo você. E aquilo mexeu muito comigo, muito fora.

Alexandre: Isso, isso é uma frase terapêutica. Anielle: Sim, ele falava, eu não consigo

Alexandre: Isso foi uma intervenção terapêutica. Anielle: Exato. E foi mesmo, ele falou assim: “olha, você vai ter que voltar aqui alguns, daqui a alguns meses, porque eu só tô vendo a vida da Marielle, eu não tô vendo a sua vida, eu não consigo ver”. E aquilo bateu em mim de uma maneira que, tipo, é real, porque eu tava ali vivendo vários sonhos e a gente não tava vendo os meus sonhos. E ela, muitas das vezes, assim, tipo, eu tive quatro sonhos com a Mari, quatro sonhos que falaram muita coisa pra mim. Desde pessoas a quem confiar, de quem não confiar. E é impressionante como tudo isso bateu e tá batendo até hoje, assim, muito certinho. E a Mari ia também, a Mari frequentava. Então, hoje, né? Entender isso e conseguir. Ela ia, a minha mãe tava falando “ultimamente”, ela ultimamente ia também, é isso, tem que aceitar, porque é, né? A vida ia levando por um caminho que tava sempre presente nisso. Mas foi com muita luta Alê, eu te confesso assim, eu acho que vai dar toda essa busca, nesse caminho, essa coisa desse autoconhecimento e tal. Mas cara.

Alexandre: Eu adoro as suas postagens de rede. Eu vou te dizer isso, porque eu acho que elas quebram a imagem da ativista. Às vezes, você tá lá dançando, sabe? Sabe, porque eu acho que esse tipo de coisa também é pedagógica pro povo branco, sabe? Porque é um pedaço da vida que é roubado do povo negro. Anielle: Total.

Alexandre: Assim, esse é o direito a leveza, sabe? Fazer dancinha boba no TikTok se quiser. Anielle: É, de tudo, exatamente. Exatamente. Quando a gente fala de maternidade, quando a gente fala, a gente tava gravando um vídeo, eu e o Fred e o pessoal já veio me cobrar, tipo, quando que vai sair outro vídeo desse? Não sei o que, tipo, quebra um pouco do tipo do só se é a irmã da Mari. Isso. Mas é importante, é importante falar.

Anderson: O instituto tá fazendo alguma coisa pra Europa, cês precisam de ajuda, cês precisam de um braço aqui, a gente pode falar sobre isso, vocês acham que isso tem a ver? Diga aí. Anielle: Acho super, a gente não tá fazendo nada nesse momento pra Europa, propriamente dita, né? A gente tem recebido algumas doações de fora aqui, é a gente tem participado de algumas coisas, algumas palestras, enfim, mas a gente não conseguiu ainda ter esse braço aí, acho que a gente pode super falar sobre isso e super agregar.

Entrevista publicada na Edição 33

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Escritor e ativista social, nascido em Madureira, Rio de Janeiro. Em 2016 lançou Rio em Shamas, indicado ao Jabuti de 2017, pela Editora Objetiva. Foi roteirista na Rede Globo e Multishow/A Fábrica, colunista da Folha de São Paulo e Metrópoles.

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