ACAB

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O Brasil de 2021 gosta de citar a Bíblia. Então toma:

Acab foi um rei, há milhares de anos, em Israel.

A Bíblia conta sua história.

Houve um tempo, durante seu reinado, que Israel foi cercada por um grande exército, e o cerco durou muitos dias, até que a fome e a sede se instalaram nas cidades.

O rei então mandou os seus servos buscarem água pros seus cavalos.

Veja, o povo com fome, o povo com sede, e o rei mandou buscar água pros seus cavalos. Estamos falando de um líder em que a vida de seres humanos vale menos que dos seus bichos de estimação. Hoje, ia ter vegano defendendo Acab, dizendo que pode dar água pro cavalo e não pra mulher negra com três filhos na favela, porque esse negócio de achar ser humano melhor é “especismo”, termo pseudo científico criado pelos místicos do veganismo.

Mas a gente não habita nesse contexto. Eu venho de um lugar onde vida de gente vale mais que vida de bicho. Isso pode te doer. Mas é porque você não via gente sangrando, corpo caído nas ruas, no lugar onde você morava. Anos e anos de observação do cotidiano violento, eu passei a enxergar o mundo A PARTIR DO LUGAR ONDE ME ENCONTRAVA.

E mesmo que fisicamente não esteja mais lá, eu continuo vendo o mundo da mesma forma, e disputando esses espaços, porque aqui fora, ninguém vê o que acontece do morro pra dentro.

O que acontece no Brasil hoje é o que aconteceu nos tempos de Acab.

De um lado, Guedes dizendo que pobre passa fome porque come demais. Bolsonaro debochando de meio milhão de mortos. De outro, uma delegada e uma juíza não consideram racismo e negam prisão pro ladrão de bicicleta do Leblon. Uma mulher branca diz que a jovem que venceu um concurso de beleza só ganhou porque foi cota. Que agora, branco tem que tomar banho de creolina.

E do outro lado da cidade do Rio, quatrocentos homens e helicópteros fizeram uma megaoperação no Alemão e Vila Cruzeiro, resultando na morte de 4 pessoas, uma delas Thiago, 16 anos, que queria ser militar. Apesar de ter visto tudo que os militares fizeram no Alemão quando ele era criança.

Temos um governo que despreza as pessoas. As vidas, e as mortes.

Seja quem for. Não vi Bolsonaro dizer uma palavra sobre a morte de Arolde de Oliveira, morto pela Covid, um dos seus principais aliados.

As desigualdades se acumulam, se atravessam.

De um lado, um jovem branco, criminoso com 28 passagens pela polícia, e a juíza recusa prender. De outro, é jovem negro acusado de roubo, levando tiro dentro de casa, tiro na cabeça, grávida, na rua.

Cada vez mais sintomas da fome. A correria pra comer, pra pagar uma conta, está tomando o tempo que poderia ser útil para nos organizarmos politicamente. Mas a nova escravidão se chama pobreza. E enquanto você mantém uma pessoa pobre, presa nesse ciclo, ela não tem tempo pra pensar no país, ela apenas sofre.

As passeatas de sábado tem um grupo de pessoas que ainda conseguem parar pra pensar no todo. Olham o macro. Mais que o preço do gás, pensam em quem está por trás disso. Mais que a fome, pensam no Guedes planejando a miséria brasileira.

Uma grande parcela não foi protestar, porque ficou em casa, lutando, apagando incêndio, tentando sobreviver, contando corpos. A pobreza tira as pessoas do campo político. Ou tenta sobreviver, ou luta com fome. Mas com fome, ninguém luta.

Nós temos extermínios em curso no Brasil. É o nosso pior tempo. Nise Yamaguchi, médica que defende tratamento precoce, decidiu processar senadores da CPI dizendo que foi vítima de manterrupting e mansplaining. É o lixo em estado puro. E é provável que apareça mulher dando razão a ela.

Acab foi morto. Sua esposa, Jezabel, foi jogada do alto de uma torre, e comida pelos cães e porcos. Seu reino foi destroçado. Acab, homem que deixou seu povo passar fome e sede, enquanto alimentava os cavalos e vivia uma boa vida, no Brasil seria apenas mais um político. Teria sua vida pública na Zona Oeste, envolvido com milícia, seria presidente, ia morar num condomínio fechado, cercado de pobreza no país, e comendo e bebendo.

Nós, do lado de fora.

Acab tinha seus profetas particulares.

Bolsonaro também. Bolsonaro tem Malafaia.

Até transmitiu um CULTO pela TV Brasil.

Mas Acab tinha ódio de um profeta, Elias.

Elias condenava Acab. Apontava seus erros de caráter, suas falhas, sua forma iníqua de tratar o povo pobre. Ao ponto de Acab dizer a Elias:

Eis o perturbador de Israel.

Há muitas pessoas hoje que são os perturbadores do Brasil. Os que “torcem contra” este Acab. Não há como torcer para um governo genocida. E como profetas falam o óbvio, profetas então são os lúcidos da balança.

O Brasil está no seu pior momento. Nunca na nossa história vivemos isto.

Mas Acab não dura pra sempre.

Nenhum Acab dura.

É preciso suportar a noite.

Escritor e ativista social, nascido em Madureira, Rio de Janeiro. Em 2016 lançou Rio em Shamas, indicado ao Jabuti de 2017, pela Editora Objetiva. Foi roteirista na Rede Globo e Multishow/A Fábrica, colunista da Folha de São Paulo e Metrópoles.

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