Malabarismos em vão

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Desde que Putin resolveu avançar com suas tropas em direção à Ucrânia, em posição de ataque, com seus bombardeios diários, não se fala de outra coisa. Pudera, a Europa não se vê diante de um conflito bélico de tal magnitude desde a 2ª Grande Guerra, como bem lembrou-nos a fabulosa e competentíssima jornalista Cinthia Rocha em outro texto aqui na Coluna de Terça. Dentre bombas, ameaças nucleares, bunkers, sanções econômicas que mais parecem querer excluir e apagar uma nação do mapa mundial e interplanetário, e, claro, um esforço cibernético e midiático sobre-humano para deter o poder da narrativa da guerra, outro assunto saltou aos olhos do mundo nos últimos dias. O racismo ucraniano, ou melhor, europeu para com refugiados de origem não-europeia (com ênfase em pessoas de pele escura) em suas fronteiras.

Quer dizer, saltou aos olhos somente dos desavisados.

Porque aqui, meu parceiro, é Brasil. Eu estou acostumado é com cara de nojo no Shopping Leblon, com o segurança falando no fone quando eu entro na loja de departamentos, com ter que provar que estava em um teatro, localizado no mesmo lugar há uns 10 anos, não com ingresso, mas sim com story de Instagram. Isso aí só choca quem acha que racismo não existe. E que Europa é “melhor” que a gente em alguma coisa.

Os cara num tem nem feijão. Ok, têm transporte, “segurança”, mas não têm feijão e são racistas pra caralho. Além de tudo, ainda escravizaram quase tudo de civilizações que teríamos no ocidente. Ou seja. Nem vou falar nada. Vocês só reclamam de fogo quando a gente grita “fogo nos racistas”.

O fato é que esse assunto se tornou viral nas redes sociais depois de muitos portais de notícias, ao cobrirem toda a crise migratória provocada por essa guerra insana entre Putin x OTAN, com Ucrânia de bode expiatório, exibirem falas como a do Primeiro-Ministro da Bulgária, Kiril Petkow, que disse que “esses refugiados que vemos não são iguais aos que estamos acostumados… Essa gente é europeia”. E ainda completou: “Essas pessoas são inteligentes, cultas. Não é aquela onda de refugiados, com os quais estamos acostumados:  pessoas com quem não nos sentimos seguros, de quem nada sabemos a respeito do passado, que poderiam até mesmo ser terroristas…”, afirmou.

Outros casos famosos foram do correspondente da emissora norte-americana CBS, que disse que as “ocorrências em Kiev não são como no Iraque ou no Afeganistão, países em que os conflitos já assolam a população há muito tempo”, mas que Kiev é uma cidade “civilizada, europeia”. E, claro, o caso de David Sakvarelidze, ex-procurador ucraniano, que disse, em entrevista à BBC transmitida no domingo (27/2), que a situação de guerra em seu país era “muito emocional” para ele porque “povos europeus de olhos azuis e cabelos loiros” estavam sendo mortos todos os dias.

A partir de então, começaram a pipocar os relatos de dificuldade de negros e árabes de embarcar nos trens das fronteiras ucranianas para conseguir asilo nos países vizinhos, em especial, a Polônia. Mesmo com ajuda humanitária dos próprios cidadãos do país em questão, isto é, mesmo com os próprios poloneses cruzando a fronteira e oferecendo suas casas e documentos como forma de facilitar a passagem de muitos deles e delas, os relatos eram de truculência dos agentes da fronteira e do impedimento categórico da passagem.

Vídeos e vídeos foram gravados mostrando negros e negras sendo hostilizados por pessoas brancas e algumas delas oficiais da fronteira, ao tentarem embarcar em um trem. Aparentemente, não podiam embarcar por serem negros e negras. A Coluna de Terça noticiou isso tudo.

Autoridades africanas se manifestaram em apoio e solidariedade aos seus irmãos e irmãs em situação de guerra. Mas não só: cobrando PUBLICAMENTE autoridades de toda sorte, bem como a letárgica ONU, para que se explicassem. Foi um grande “que porra é essa, Europa?”, em conjunto. Achei foda. Mas achei mais foda ainda eles, também em conjunto, lavarem as mãos na votação da Assembleia Geral da ONU que determinaria a condenação da invasão russa. “Essa guerra não é nossa. Vocês, que são brancos, que se entendam”. Mensagem dada. E a Coluna de Terça aplaude novamente.

Ainda assim, com cara mais lavada do mundo, o alemão Chris Melzer, o Porta-Voz do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (UNHCR, na sigla em inglês), branco (eu nem precisava falar), falou que recebeu sim as tais acusações pela primeira vez no domingo, dia 27, e fez investigações. Mas tratou de assegurar que nenhuma pessoa foi impedida de embarcar ou mesmo mandada de volta da Polônia à Ucrânia, porque isso configuraria quebra da Convenção dos Refugiados, datada de 1951, em Genebra, na Suíça, a qual a Polônia foi signatária. O que houve sim, disse ele, foram “problemas com a documentação de pessoas que não têm cidadania ucraniana, ou passaporte ucraniano. Estas pessoas permanecem retidas”. Entretanto, assegura o Porta-voz, “não houve repressão”. Malabarismos retóricos de um branco com o cu na mão.

A merda é que este homem deu entrevista.

Foto: Reprodução YouTube

Em entrevista ao vivo, direto da estação de trem de Przemysl, na Ucrânia, para o repórter alemão Ibrahim Naber, do portal alemão Welt, o estudante nigeriano Yemi (não sei se é assim que se escreve seu nome) relata em inglês que mulheres brancas não queriam que ele embarcasse no trem, que animais estão embarcando antes de seres humanos. E que, sim, isso tem total cunho racial. Ele é enfático, direto, curto, grosso. Ele não tem nem tempo de sofrer com essa porrada; ele PRECISA ser forte pra denunciar, talvez com a esperança que brancos falando pra brancos façam alguma coisa.

Aliás, o mesmo repórter publicou uma matéria no mesmo portal Welt, na qual ele informa sobre Hooligans, ou seja, um bando de desgraçado nazista encapuzado (lógico!), sem bosta nenhuma pra fazer e com certeza de impunidade, os quais estão rodeando uma estação de trem na Polônia que tem recebido muitos refugiados, com a intenção de atacá-los. Suas preferências? Claro: pessoas com origem árabe ou africana. A ajuda para estes, diz ele, é limitada; e o tratamento, completamente diferente do tratamento dado aos europeus.  Será que o Porta-voz vai gastar saliva para falar bonito aqui também?

Vozes se levantam para endossar o racismo europeu, mesmo em tempos de guerra. E vozes refugiadas também. Como a do jornalista sírio Okba Mohammad, que classificou as palavras do Primeiro-Ministro búlgaro descritas mais acima como “uma mistura de racismo com islamofobia”. O jornalista, que fugiu de Daraa, sua cidade natal, em 2018, vive agora na Espanha, onde iniciou uma revista bilíngue em árabe e espanhol, com outros refugiados. Falando de guerra, ele é assertivo: “um refugiado é um refugiado, não importa se europeu, africano ou asiático”.

Outra voz muito importante e sensata é a da jornalista teuto-palestina Alena Jabarine (@alenajabarine), que condenou veementemente o que considera ser um “movimento racista por parte de muitas das mídias ocidentais”. Para ela, é essencial debater o passado colonial e militar, bem como o presente do suposto mundo civilizado, não só no Instagram: “os jornalistas teriam uma responsabilidade gigantesca”, pensa ela, com poder de influenciar toda a sociedade. “E em algum momento isso seria traduzido em ações políticas.”

Ainda tem muita água pra rolar e bomba pra cair, infelizmente. Mas, definitivamente, nenhum de vocês vai poder dizer que racismo não existe, né? Seja descarado, como é aqui, seja “sutil”, “subliminar” ou “com palavras bonitas”, como é lá, racismo é racismo. E continua merecendo fogo. Até lá, vocês continuam brincando de dar tapinha nas nossas costas, fingindo que sentem muito por essas dores com lágrimas dignas de “Malhação”.

A sorte deles (e de muitos de vocês também, confesso) é que há séculos e séculos a gente só quer paz. Quando for por vingança,

vai começar o ano da serpente.

Fontes:

https://rp-online.de/panorama/ausland/polen-grenzschutz-weist-vorwuerfe-von-rassistischem-vorgehen-gegen-fluechtlinge-zurueck_aid-66688477 (Rheinische Post Online)

https://rp-online.de/politik/ausland/krieg-ukraine-fluechtlinge-in-europa-willkommen-chance-fuer-umgang-mit-migration_aid-66747815 (Rheinische Post Online)

https://www.instagram.com/p/CanCngtqvQY/ (ZDF heute Instagram)

https://www.welt.de/politik/ausland/plus237264295/Polen-Bei-der-Hilfe-fuer-Fluechtlinge-gibt-es-eine-klare-Priorisierung.html  (Welt)

https://www.deutschlandfunkkultur.de/ukraine-krieg-medien-rassismus-alena-jabarine-102.html (Deutschland Funkkultur)

https://www.youtube.com/watch?v=qYS3QJi2CI0 (Welt Youtube)

https://www.nexojornal.com.br/grafico/2022/03/02/Como-votaram-os-pa%C3%ADses-na-resolu%C3%A7%C3%A3o-da-ONU-contra-a-R%C3%BAssia

É Preto, professor de alemão na Educação Infantil, formado em Letras pela UFRJ, pós-graduado pela UERJ, escritor do cotidiano de educador, baterista, viajante, poliglota, amante de esporte. E está Sobrevivendo no Inferno.

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