Não posso fugir de mim mesmo, eu sei.

Leitura: 3 min

Os mais novos estão me trazendo uma lição: eles estão lutando pela sua identidade, sexualidade e seu corpo.

Maria Eduarda, 54 anos.

Aos 50, Maria era, para todos, um homem, executivo, de classe média, que depois de MEIO SÉCULO, teve coragem pra silenciar uma voz dentro de si: ele não se via homem, mas mulher.

Por 4 anos, ele fez sua transição, seu renascimento. Hoje, é Maria Eduarda. Do seu casamento, trouxe ao mundo duas filhas. Separou, e um tempo depois, buscou ajuda psiquiátrica e psicológica. Daí, se libertou. A história de Duda está nessa reportagem do TAB UOL, aqui

Nós vamos ter estagiárias na Coluna. Será nossa experiência com pessoas trans, do jornalismo.
Na entrevista com a jovem, eu disse que eu queria muito ter tido a coragem dela. Ela me acolheu, enquanto eu falava.

Em 1992, na Igreja Batista de Madureira, naquele meio, naquele Brasil, não era possível assumir sua identidade. Se hoje é difícil, imagina naquele tempo. Quantas amigas mães, da minha geração, me contam que estão na mesma luta. Nós somos uma geração de pessoas trans que, por causa da opressão pesada daqueles anos, não pudemos sequer falar sobre nossa sexualidade.

Já há uns 2 anos eu tenho tratado desse tema em terapia. Não me vejo homem. Olhando pra trás, nunca andei com homens, nunca troquei amizades ou ideias com homens, nunca criei vínculos com homens, nunca confiei em homens. Não me senti atraído pelo mundo dos homens. Não é apenas o fato de que não gosto de futebol, porque há mulheres que gostam. Mas todos os símbolos de masculinidade da minha geração, eu rejeitei.

Quando enfim, por conta do diabetes, desenvolvi disfunção erétil grave, no começo da pandemia, entrei em discussão sobre o que seria o meu corpo. Quem eu sou, e se o que me define é justamente o membro do meu corpo que havia “morrido”.
Então eu entendi o que as pessoas trans estão gritando. Então eu entendi meu passado. E as vozes que me incomodavam, e eu entendi quem eu sou.

Mas os jovens estão tendo mais coragem que nós.

Muitos da nossa geração vão morrer sem se libertar. O corpo, a carne, não dá conta de quem nós somos. Nós somos mais.
Eu, quando escrevo, ouço uma voz de mulher falando. Não sei se é por isso que 80% das pessoas que me leem são mulheres. Não sei explicar porquê eu ando, trabalho, brigo, me desentendo, amo, discordo, concordo, leio, consumo, aprendo, tenho como referência, mulheres, o tempo todo.

A minha forma de levar a vida, vem se tornando cada vez menos fálica. Eu não acredito no masculino, e eu não sei nada sobre o feminino, mas eu não sei. É muita informação, e muita frustração.
Eu vejo Marvelous Mrs. Maisel e fico horas, HORAS, perdido nos vestidos que ela usa na série. Eu, minha cabeça, olha, é uma merda. Ao mesmo tempo, debocho tanto de tanta coisa, eu sou praticamente uma Dercy. Uma Fran Lebowitz. Eu não sei te dizer quem sou. Só sei o que eu não sou.

Todos devemos falar sobre transgeneridade. O mundo não cabe em rosa e azul.

Escritor e ativista social, nascido em Madureira, Rio de Janeiro. Em 2016 lançou Rio em Shamas, indicado ao Jabuti de 2017, pela Editora Objetiva. Foi roteirista na Rede Globo e Multishow/A Fábrica, colunista da Folha de São Paulo e Metrópoles.

somos a primeira voz
que você ouve pela manhã.
a última com você na cama.

Siga a CT