ÁFRICA EXISTE EM RELACIONAMENTOS

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Ilustração: Claudio Brites

Porra, entrei no Uber, o amigo ia me levar no hospital, e me perguntou se tava tudo bem.

-Tá tudo bem, sim, meu irmão.

-Ah. Brasilêêiro?

-Do Rio. Zona Norte.

-E está sentido muito calor aqui em Lisboa?

-Pô. Tem dias que parece o Rio.

-Na Zona Norte fazia muito calor?

-Zona Norte e Zona Oeste, meu irmão. Eu morei em favela, é quente.

-Ah, qual o nome da favela que você morou?

-Vila Aliança.

-É muito quente?

-Rapaz. Vila Aliança fica dentro de um lugar chamado Bangu. Então pensa num lugar sem praia, sem mar, só trem.

-É muito sofrido, não é, meu irmão?

-É muito.

-E você sente saudade de lá?

-Muita.

-Eu não conheço muitos brasileiros dessa Zona Norte não.

-É porque aqui chega mais brasileiro com dinheiro. Ou de Goiás.

-Goiás?

-É. Um pessoal complicado. E os brasileiro que vem pra cá às vezes é rico, branco, arrogante. O senhor tem que conhecer mais as favela, a periferia.

-O que é diferente?

-Tem muito afrodescendente. Muita gente preta, negra, mestiça. Minha família mesmo, é misturada. Eu fiz um exame aí, diz que meu DNA tem Nigéria. O Brasil ainda tá caminhando. Tá tudo muito confuso, mas é muita pobreza, meu irmão. A polícia abusa muito, meu irmão.

-Sim. Sempre a polícia, meu irmão.

-É.

-Olha, quando eu for ao vosso país, eu quero ir em Madureira.

-Nasci lá.

-AHH, eu quero muito conhecer Madureira. É grande?

-É um reino, amigo. Pra lá foram muitas famílias de ex-escravos, pro Morro da Serrinha. Berço do samba no subúrbio. Inclusive, muita referência de Angola que nós temos lá.

-Angola? Eu sou de Angola!

-Pô, meu irmão. Tem muito de Angola no país nosso. Muito. Nas regiões populares a gente reverencia mais. Nas regiões mais ricas eles querem ser europeu. Teve um rei africano lá, meu irmão. Ganga Zumba. Teve um reino africano, de todas as etnias. Foi coisa grande.

-e os portugueses, que fizeram?

-por muito tempo, nada. Ganga Zumba era rei e diplomata. Mas depois invadiram.

-Olha, eu quero ir lá, pra ver isso tudo. E eu quero muito ir pra uma roda de samba! Eu vou aqui, no Cais do Sodré. Gosto muito! Deve ser muita saudade ficar longe da nossa gente, né?

segurei o choro. Olhando a cidade pela janela do carro.

-É muito difícil, meu irmão. No subúrbio, no morro, tudo que a gente tem é a gente mesmo.

-Eu sei. Eu sinto muita saudade. Aqui é muita solidão, irmão.

-Porra, muita.

-Mas um dia você volta.

Antes de eu descer, ele saiu, abriu a porta e me deu um abraço.

Tava tudo ali.

Não há o que explicar. Tá tudo ali.

É disso que estamos falando.

Encontrar nas ruas do mundo a irmandade com o homem angolano, negro, que nos vê com afeto. É um monte de gente se abraçando ali, sem você ver. É muita história pra trás.

África existe nas relações de amor.

Saí do Uber, antes de entrar no hospital, chorei. De alegria, sozinho, na calçada. Como poucas vezes nesse continente chorei. Obrigado.

Escritor e ativista social, nascido em Madureira, Rio de Janeiro. Em 2016 lançou Rio em Shamas, indicado ao Jabuti de 2017, pela Editora Objetiva. Foi roteirista na Rede Globo e Multishow/A Fábrica, colunista da Folha de São Paulo e Metrópoles.

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que você ouve pela manhã.
a última com você na cama.

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