Deserto alimentar: o que aprendi sobre a comida

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Primeiro: como muitos sabem, sou diabético tipo 2. Descobri em 2018, e pelo que investiguei, é provável que fiquei 13 anos com a doença se desenvolvendo, em silêncio. Quando ela se manifestou, foi do nada, numa manhã de 7 de janeiro de 2018, quando minha glicose chegou a 585.

Desde então, cuido da minha saúde. Antes, morador de favela e subúrbio do Rio de Janeiro, não tive atenção básica, informação ou meios de me saber doente. Eu sou resultado do sistema. Um sistema que joga as pessoas ao Deus dará, em regiões onde acesso à saúde, alimentação e qualidade de vida não são prioridade do Estado. Quem mora no Jardim Botânico tem tudo na mãozinha. Se você é de Madureira, se vira, amigo.

Numa cidade – e num país – com esse imenso contraste, somos todos vulneráveis ao sistema. O volume de horas trabalhadas, a mobilidade e o tempo que passamos nos transportes, as horas de sono, as oportunidades de fazer exercícios, a qualidade da alimentação variam, de lugar pra lugar, e de DINHEIRO PRA DINHEIRO. O Mapa da Desigualdade de 2020 diz que um morador dos Jardins, região nobre de São Paulo, vive 23 anos mais que um morador do Jardim Ângela, região de periferia.

Ou seja, o Brasil tem sim um projeto de abandono, que resulta na morte e no extermínio. Os mais moderados dizem que um governante não acorda e diz: “Hoje vou matar mil pretos e pobres”, mas, ao não fazer nada sobre os problemas, ele PERMITE o resultado morte, que se acumula, logo, é como se ele acordasse pra matar. Enquanto a prioridade não for erradicar a pobreza, o Estado é assassino, e só quem tem dinheiro se salva, porque a dignidade no Brasil é monetizada. Educação de qualidade é monetizada, saúde, cultura, tudo.

De modo que falo desse tema, em primeira pessoa. E porque vivi três realidades: no Rio, em Nova York e em cidades da Europa.

O que é um deserto alimentar?

Desertos alimentares são locais onde o acesso a alimentos in natura ou minimamente processados é escasso ou impossível, obrigando as pessoas a se locomoverem para outras regiões para obter esses itens, essenciais a uma alimentação saudável.

(alimentandopoliticas.org) (me parece que esse site não está mais ativo, mas ainda há o registro desse conceito como de autoria deles no Google)

Se você quiser embasar estudos, há o Mapeamento de Desertos Alimentares do Ministério da Saúde que explica, em nível Brasil onde há mais ofertas de alimentos in natura, minimamente processados, processados e ultraprocessados. Em grandes capitais, por exemplo, é comum existirem menos feiras livres e zero ofertas de produtos orgânicos em grandes regiões periféricas, ao passo que existem imensas redes de fast food e mercados para a venda de ultraprocessados.

Em Bangu

Onde eu morei, por exemplo, na Vila Aliança, favela vizinha a Vila Kennedy.

Há o Guanabara, o SuperMarket, o Inter, Assaí e outras redes menores, onde basicamente grandes marcas são oferecidas e muitos processados. Há 18 supermercados em Bangu, e apenas uma feira livre.

Isso mostra a diferença, e revela a existência de um deserto alimentar. Muita oferta de produtos com forte aplicação de agrotóxicos, produtos ultraprocessados e hipercalóricos, carnes com excesso de hormônios, biscoitos, pães, embutidos, açúcares, gorduras. Some a esse exército a presença de restaurantes fast food, as grandes redes como McDonald’s, Burguer King, Bob’s, Girafa’s e todos os podrões de rua, as pizzarias, e todo universo de comida entregue por IFood.

Não há ofertas de produtos orgânicos.

No Brooklyn, Nova York Há redes de supermercados menores que, tirando o preço em dólar, é igual ao que temos no Brasil. Grandes marcas, produtos ultraprocessados. Target, Bravo, CTown e uma infinidade de Delis, pequenos mercados, com frutas e legumes produzidas no centro-oeste, bombadas de agrotóxicos e carnes vindas de todo lugar do mundo, inclusive do Brasil, com a mesma lógica de excesso de hormônios. E quanto mais pra dentro do Brooklyn, mais acesso a Cheetos, menos acesso a melancia. Já fast food, é um universo. Wendy’s, McDonald’s, Burguer King, 7Eleven, hamburguerias a dar com pau, pizzas, deep fried, doces, sorvetes. Um parque de diversão movido a açúcar e óleo, pra aguentar o ritmo doentio de NY. Doentio? Sim. Pra você que é turista é ótimo, pra quem mora nas periferias, é pesado. E olha que não falei de Queens, Bronx e Harlem.

Lisboa, Zurich, Köln

Portugal, Suíça e Alemanha. Eu visitei três cidades, em três países diferentes, e moro numa delas, mas há algo em comum: Europa. Eu conheço a realidade alimentar de uma periferia no Rio, em São Paulo, pude observar elementos comuns em Nova York e essas duas realidades são distantes do que acontece na Europa. Primeiro, que a Europa é pequena. A densidade populacional é a maior do Ocidente. Segundo que, por razões históricas, o território possui ampla distribuição de alimentos e produção interna de verduras, legumes e frutas, e o que não produz, importa. As periferias existem, embora menores que nas Américas, e o fator desigualdade conta. Menos horas de trabalho, menos distâncias até o trabalho, salários melhores, acesso a alimentos orgânicos em maior oferta, produtos com menos agrotóxicos, carnes locais com menos hormônios, proteína vegetal e de insetos. Calma, não é o paraíso. Mas a cultura de comer mais natural existe, e sim, é possível comer bem por conta de todas essas questões, e porque a União Européia investe e subsidia produtores locais. Existe um programa de alimentação, um projeto.

A oferta de ultraprocessados se faz igualmente presente. Se você quiser esses alimentos, vai encontrar, como no Capão Redondo. Mas encontra produtos orgânicos, em qualquer supermercado. Encontra feiras, em praticamente todos os bairros.

Então isso explica a supremacia alimentar, o que penso ser o inverso de deserto alimentar.

Esses dias eu tava olhando pra um sujeito alto, branco e sua esposa, e seus filhos. Tudo branco. Altos, magros. Eram europeus do norte. Alemães, suíços. Enchendo o cu de pão integral, geleia e frutas, num café em Lisboa. Pensei: só de olhar praquilo, engordo. Já aqueles canalha, não. Isso se deve ao fato de que eles comem AS MESMAS COISAS HÁ DÉCADAS.

Há estabilidade sócio-econômica e acesso a saúde e informação. Então eles comem as mesmas coisas o que permite dizer que seguem uma dieta. Isso não acontece em Bangu, ou no Jardim Ângela. É um dia de cada vez, comendo o que tem. Se tem ovo num dia, come, se tem salsicha no outro, vai, se é podrão, soca, se é miojo, pizza com borda de catupiry fake, chéder em tudo, bacon para caralho, e mama Coca. É uma porradaria que só tem pausa pra um pacote de Torcida ou uma MALA de Fofura Cebola. Porque Fofura não vende pacote, vende arroba, vende saca. Mala.

E o mercado pressionando a pessoa a comer NOVIDADES. Novo isso, novo aquilo, lasanha de microondas que custa uma merréca e você não faz ideia do que é feito aquilo ali. Cada vez mais comida rápida, barata e hipercalórica. Porrada de IFood no celular, porrada de salgado e guaraná no caminho do trampo.

Quando você percebe, faz anos que não chupa uma laranja. Não come uma banana. Não compra uma abóbora pra fazer com uma carne de um açougue de bairro. Não tem feira. Não tem mais açougue. A gente se alimenta em bloco. Indo ao Extra, comprando o que eles botam lá pra gente comer, a ração dos novos gados.

E experiências como as do MTST, são criminalizadas. Ou dos produtores e agricultores de Parelheiros, no extremo sul da Zona Sul de São Paulo. Quem come orgânico é um palhaço da Vila Madalena, ou uma bruxa mística do Leblon. Ambos do PSOL. E pobre segue no deserto. Adquirindo doença, morrendo cedo, ingerindo caloria pra continuar vivo. Mais da metade da população brasileira está acima do peso. Esse pessoal que posta foto de lifestyle, esse pessoal tá vivendo o privilégio. Tudo branco e branca, rindo da sua cara. E ganhando dinheiro pra caralho.

Os desertos existem, estão no Rio, São Paulo e Nova York, matando sobretudo pessoas negras, latinas, imigrantes. A luta racial também é lutar por comida de qualidade na boca do povo racializado.

Escritor e ativista social, nascido em Madureira, Rio de Janeiro. Em 2016 lançou Rio em Shamas, indicado ao Jabuti de 2017, pela Editora Objetiva. Foi roteirista na Rede Globo e Multishow/A Fábrica, colunista da Folha de São Paulo e Metrópoles.

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