Existem muitas verdades

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Ilustração: Claudio Brites

Existem muitas verdades.

Uma delas, é sobre o momento em que você, na igreja, sente a mão no teu ombro e o irmão, ou pastor, fala pra você na frente da congregação:

Deus tem um plano na tua vida.

Quando você é chamado lá na frente, na hora da oração, da oração que consagra e dedica as vidas dos irmãos, e quando você vai, anda pelo corredor até chegar na frente, e sente uma mão no teu ombro. E ouve que Deus não desistiu de você. E ouve que Ele vai fazer algo muito grande na tua vida. Que Ele tá ouvindo tua oração na madrugada, e vendo o teu sofrimento. Ele tá ouvindo teu choro, vendo tua geladeira vazia, você sem emprego,

mas ainda assim,

Ele tem um plano na tua vida.

E a igreja tá contigo ali, ouvindo. E os irmãos levantam a mão e oram por você, e pedem que Deus te abençoe,

amigo,

existem muitas verdades nessa questão dos evangélicos.

A esquerda, no intuito de disputar poder com os pastores, e impedir o avanço de pautas conservadoras, acaba batendo nesse irmão, nessa irmã, que vai pra igreja numa quinta feira à noite, na Baixada Fluminense, no Extremo Sul de São Paulo, na Vila Sarapuí ou em Cidade Ademar.

A verdade dessa pessoa.

Essa pessoa onde o teu Marx não chega. Onde teu gênero neutro não chega. Ela entende o mundo pela perspectiva da Bíblia. Bíblia, livro que explica o passado, o presente e o futuro. Um livro acima de qualquer outro. Você pode odiar isso, mas é assim que é, pra milhões de pessoas, no Brasil, no mundo.

Você critica essa pessoa como se ela fosse a fonte de todo mal que o Malafaia te causa, mas o Malafaia também oprime essa pessoa. Você critica essa pessoa porque ela dá 10% do dinheiro dela na igreja, mas não fala nada dos 250 reais que tu deixa no psicanalista toda semana.

Amigo, meu amigo.

São MUITAS verdades nesse negócio aqui. Você com as suas.

Eu lembro que esse momento aconteceu comigo, eu tinha 11 anos. Eu fui com a minha mãe numa galeria em Madureira, uma loja de discos e Bíblias, e minha mãe foi comprar adesivo de geladeira com versículo, pra vender depois do culto, minha mãe vendia de tudo, de calça jeans a arranjo de flor, então eu tava na loja, ouvindo as músicas e os hinos daquele tempo na vitrola, o balconista manda minha mãe me chamar.

Anderson, vem aqui, meu filho.

O homem, eu não esqueço mais disso, ele me olhou por cima do óculos e disse, apontando pra mim:

Jovem,

o Senhor me deu um recado, que eu preciso dar pra você.

Eu lembro que eu olhei pra ele, e naquele momento o tempo parou. Como assim, Deus me mandou um recado? Mas, gente, e Deus existe memo? E não satisfeito em existir, ainda sabe que eu existo e me dá um recado?

O homem disse:

Deus tem um projeto na tua vida, que vai alcançar muitas, muitas pessoas. Você vai ficar na frente de muitas pessoas, pra falar com elas. Coloca tua vida diante do Senhor. Recebe essa palavra.

Eu lembro que poucas vezes na vida chorei tanto. Eu era uma criança ainda. Perceba: por mais aleatório que isso pareça, por mais que seja um processo que pode ser explicado pela psicologia, a relação profecia-expectativa-padrão, e tudo é você quem faz acontecer, o fato isolado é que este homem foi a PRIMEIRA pessoa que me fez acreditar em mim.

Você tá entendendo o poder disso?

Eu poderia dizer que o que ele disse, se cumpriu.

Olha você aqui, de todo lugar do mundo, me lendo.

Seja anônimo, seja professor, seja desempregado, seja artista, seja político, olha você aqui me lendo. Eu então estou na frente de muitas pessoas, falando. E isso foi dito há 35 anos.

Pode ser que, porque me foi dito, eu então desejei. E só existe o desejo. A psicanálise passa a visão.

Mas em quantas pessoas existe o desejo, ou a meta, ou o sonho, ou a missão, e elas não conseguem?

Entende?

Eu consegui. Não sei como consegui, porque eu fiz merda pra caralho, porque minha vida deu errado pra caralho, mas no fim de tudo, eu vim para o lugar que este homem disse que eu ia estar, quase 4 décadas atrás.

Uma coisa é certa, foi, e não foi, algo que eu fiz. Tiveram fatores. Tem isso que se chama de talento. Vocês dizem que eu sei escrever. Eu era um péssimo aluno de português. Eu fui reprovado muitas vezes, minhas notas eram medíocres. Eu não sei usar crase, não sei merda nenhuma, eu falo gíria pra caralho, meu dicionário é Bezerra da Silva e Racionais. Era pra outras pessoas, mais talentosas, estarem aqui, nesta página. Neste lugar.

Mas não foi assim.

Eu te explicar.

A igreja, ela muitas vezes é a primeira que acredita em você. É lá que você entende que é visto. Que é notado. Seja pelos irmãos, seja por alguém tão importante como o Deus que criou o mundo, Ele criou o mundo, mas ele está olhando pra você agora e tem uma coisa que ele me mandou te dizer. Eita.

Entende isso?

Pertencimento.

Generosidade, o perceber o outro, o desejar o avanço social do outro, o declarar esse avanço. Fazer você acreditar em você.

Você talvez não precise disso.

Mora na Vila Mariana, mora em Botafogo, uma vida classe média, com pai, mãe, ambos empregados, você tem comida pra amanhã. Tem estudo, tem acesso, tem Sucrilhos. Você não precisa disso.

Mas a gente tá todo rebentado. De onde a gente, essas pessoas, de onde nós viemos tá tudo quebrado por dentro. Relações inacabadas, é um pai que morreu, ou bateu em todo mundo e foi embora. Ou foi preso. A gente cresce sem a figura de um homem pra nos organizar nessa guerra. A gente sente o preconceito, o medo, a dor, o racismo, a pobreza. Não tem um Nike, não tem um IPhone, não tem um dinheiro, não tem um rolé, não tem uma paz, não tem um futuro, uma faculdade, um boleto pago, nada, emprego, nada.

É NESSE CONTEXTO que vem o irmão lá no culto,

quando ninguém te vê,

quando a sociedade te invisibiliza,

quando você é auxiliar de limpeza no Shopping e ninguém te nota,

quando você é atendente do McDonald’s e te ignoram,

quando você é entregador do Uber e fecham a porta na tua cara,

quando você já rodou o mundo procurando um emprego,

quando você já tentou encontrar sentido, propósito, resposta

e NINGUÉM

NINGUÉM te diz,

então aparece, tipo, Deus,

e Deus te diz: Eu tenho um plano na tua vida. Eu estou vendo você. Eu vejo a tua dor. Eu vejo que você tem importância atrás dessa vassoura e desse balde. Eu vejo que você tem valor em pé nesse trem lotado. Eu tenho um plano pra você.

Vê o que Farei.

Ah, meu amigo. Quando você ouve isso, você é um invisível, e ouve isso, então você encontra sentido e rumo.

Malcolm X fazia exatamente isso nas ruas do Harlem, e levava pra Nação do Islã. Malcolm enxergava o invisível.

Então, se a esquerda não consegue ver o invisível, alguém vê.

Se a esquerda não consegue pegar Marx e falar pra pessoa que ela tem valor, que há um propósito na luta dos trabalhadores, que um dia vamos vencer o sistema, que essa desigualdade vai acabar, a igreja entra, e diz.

Se o Estado não entra e diz pra essa pessoa que ela pode ter acesso a trabalho, educação, comida, tranquilidade, que aquela bandeira significa um país, um país com lugar pra todos, então a igreja entra, com a bandeira de Israel e o escambau. Dizendo que aquela pessoa pode contar com um Deus que tirou o povo do Egito com milagres sinistros.

Antes de fazer teu julgamento tão babaca e raso sobre o que acontece em lugares que você nem põe os pés, para pra entender que a igreja muitas vezes está fazendo aquilo que outro movimento poderia fazer.

Não condena as verdades dessas pessoas.

Entende que é tudo muito complexo pra julgar quem não tem Sucrilhos no prato.

Escritor e ativista social, nascido em Madureira, Rio de Janeiro. Em 2016 lançou Rio em Shamas, indicado ao Jabuti de 2017, pela Editora Objetiva. Foi roteirista na Rede Globo e Multishow/A Fábrica, colunista da Folha de São Paulo e Metrópoles.

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