Improvisar a Resistência

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Não sei quando começa a história de Marcio Ballas. E esse texto não é uma análise biográfica confiável, quem me conhece sabe que eu sou tudo, menos confiável.

Pelo menos assumo.

Sei que ouvi falar do Marcio lá por volta de 2006, num trabalho que ele fazia com outras pessoas, chamado Jogando no Quintal. Amigo, era algo incrível, jamais visto. O Rio, que arrota caviar pra se dizer artístico e criativo, o Rio nunca produziu nada do gênero. O Asdrubal Trouxe o Trombone, de onde saíram, entre outros, Regina Casé, Luís Fernando Guimarães, Nina de Pádua, Evandro Mesquita, Patricia Pillar, pessoas fundamentais na cultura brasileira desde a década de 1970, presentes na música, no cinema, na TV. Brasileiros incríveis. Mas no Rio, nada parecido com o que o Ballas criou foi feito. E é preciso dizer isso. Como carioca de Zona Norte, favela e subúrbio, eu não tenho compromisso com o mainstream carioca, feito na zona sul, no Jardim Botânico, por gente branca e privilegiada. Não somos acolhidos na zona sul, no entanto, em São Paulo, somos. Porque São Paulo é mais horizontal (muito mais) que o Rio. E em São Paulo, todos estão buscando um espaço. No Rio, os espaços pertencem aos que já tem muito poder, naquela bolha ridiculamente pequena, burguesa, branca e cafona. E isso pode incluir a casa de Paula Lavigne.

São Paulo é porradaria. E uma porradaria de gente talentosa de verdade, a maioria sem pai ou mãe pra garantir o aluguel. E é uma cidade tratada como inferior ao Rio, ou Salvador. Porque dizemos que os paulistanos só trabalham, não trepam, não sabem fazer piada. São Paulo pode ser um gigante econômico, e até não gosto disso, porque é gigante num sistema de exploração, mas nós sempre rebaixamos artistas paulistanos ou testamos pra ver “se são bons mesmos” e isso é de uma arrogância sinistra, vagabundo. Coisas artísticas medíocres, mas feitas no Rio, ganham as manchetes. Jogando no Quintal, É Tudo Improviso e outros trabalhos similares, são tratados como secundários, amadores. Não sei se deu pra você perceber, mas eu fico PUCTO de ver um artista brasileiro como o Ballas não ser reconhecido como deveria. Esse cara é um dos mais importantes atores e criativos vivos, e a maior parte de vocês nunca ouviu falar esse nome. Na real. Tomanoseucu.

Ballas reunia palhaços, numa quadra, num palco, num picadeiro, numa praça, e tinha música, improviso, platéia interagindo, alegria, vida.

Sempre tinha música. Uma coisa metade rock, metade leste europeu, troço incrível. O Marco Gonçalves, que hoje divide o palco com Tata Werneck, tocava guitarra num trio de palhaços: ele, uma baterista e um baixista. Eles participavam do espetáculo. Era uma bagunça, com um propósito: nos fazer leves. Em uma hora de espetáculo, a meta era fazer a gente sair flutuando 20 centímetros acima do chão. E voltar pra casa flutuando, diferente de como chegamos, cansados, pesados. O humor do improviso de Ballas cura, me curou muitas vezes, eu estou falando a real. Uma porrada de notícias pesadas, operação, morte, milícia, eu ainda morava no morro, e via na Band o É Tudo Improviso, com artistas que eu IDOLATRO. O Anderson, Evandro, Marco, Mariana Armellini, Elídio, Daniel, todos os atores e atrizes, fixos e convidados, que alguma vez jogaram nos espetáculos de improviso, no Improvável, ou no Quinta Categoria da MTV, de onde vem, inclusive, a Tata. Isso tudo que você tá vendo aí, e a gente poderia ficar horas aqui falando, são braços de uma árvore chamada Marcio Ballas. Ele é uma árvore frutífera, junto aos ribeiros de águas. Do trabalho e das utopias dele saíram centenas de outras possibilidades, pra você ter uma ideia, em 2009 meio BILHÃO de pessoas tinham acessado o conteúdo Improvável, feito por Anderson, Elídio e Daniel, que são a Cia. Barbixas.

Ballas fez brotar nos artistas, e na platéia, o amor pelo riso de si mesmo. O riso palhaço. O riso, muitas vezes, inocente. O riso criança. Se você ainda não viu, vai no youtube. Lá tem vários programas, e você vai perceber que Ballas faz humor enquanto envolve todos num processo coletivo de criação e riso. E quando dá errado, dá mais certo. Isso é um processo de educação, caralho. Isso é vida comum, partilha de amor, de brincadeira. Aquilo que temos cada vez menos. Precisamos rir juntos, antes de ir beber. Precisamos gozar juntos, antes de transar. A leveza e a surpreendente simplicidade dos métodos de Ballas nos espetáculos que ele de maneira pioneira lançou nos palcos, faz com que a gente perceba que É POSSÍVEL FAZER HUMOR SEM AGREDIR. O humor de agressão, humor de ofensa, que vemos em Vai Que Cola, que era um (não apenas) dos recursos de Paulo Gustavo, e que está presente em praticamente todos os stand-ups, é ótimo, eu amo, mas graças a Deus, NÃO É O ÚNICO JEITO de fazer rir e fazer humor. Puta que me pariu. Graças a Deus.

O improviso te dá SEGUNDOS pra desenvolver uma ideia e, junto com a platéia, chegar ao ponto: o riso. Tem que estar muito alerta, atento, lúcido, pra brincar. Não é o lugar comum de olhar o defeito do outro. É OLHAR PRA DENTRO, e Ballas faz isso, porque ESTUDOU para ser palhaço. Essa parada de palhaço, isso é olhar pra dentro, essa porra é terapia, amigo. O Ballas fez pós em psicodrama. Vai vendo. Os nossos medos, nossas sombras, vem a tona, quando nos tornamos palhaços. Cê acha mesmo que carioca pega essa visão com facilidade? Carioca não olha pra dentro. Não gosta de dia nublado, sinal fechado e terapia.

Depois de assistir um video de Ballas eu passo o dia me perguntando onde está o meu melhor, e como posso dar esse melhor pra alguém. O trabalho de Ballas é meio que um sacerdócio. Rabínico. E eu nem sabia que ele era judeu. Mas eu penso que o Reino de Deus vai ser isso: Palhaços, humor coletivo, aprendizado, improviso. Ele já fez isso em campo de refugiado, cara. Era do Doutores da Alegria. Pensa em quanta coisa bonita.

Eu quero que o Ballas seja conhecido, cada vez mais. Que nosso país tenha condições de reconhecer seu talento, dar trabalho, recursos, e ele ainda formar muitas pessoas e utopias.

Como disse, esse texto não é biográfico. Ele é do sentir. Ballas, e todos os atores e palhaços que trabalharam com ele, me salvaram da dor e da depressão muitas vezes. Eu morava na Vila Aliança, uma favela na Zona Oeste do Rio, extremamente violenta. E eu morava num conjunto habitacional na Estrada do Taquaral. Muitas crianças, com tardes livres, procurando algo pra brincar. Uma vez, com uma amiga e vizinha, que também gostava do Ballas, fizemos uma roda com as crianças. Compramos pipoca doce, daquele pacote rosa, e fizemos, com 5 crianças, uma brincadeira de improviso. Meu amigo, foi a coisa mais linda. Isso foi em 2007. Chegamos a ter 30 crianças, elas iam bater na minha porta pra me chamar pra brincar. Ballas não sabia disso. Então, eu decidi que, se um dia eu fosse minimamente conhecido, ia falar disso. Esse dia chegou. Fiz isso ainda na Maré e numa escola em Caxias. Eu era um educador popular, e se consegui ensinar algo pra alguém, foi me inspirando em Ballas. E olha, criei a Universidade da Correria, dei aula pra mais de 10 mil pessoas, e sempre, no começo de cada aula, eu pensava: e se Ballas estivesse aqui, como seria a aula? Conheçam o humor de improviso, os palhaços, o Balla. Lutem por eles. Eles estão lutando pela vida da criança em nós.

Em tempos de falta de sorriso, em tempos de falta de alegria, rir é resistência. E se eles fecharam o sinal pra nós, vamos improvisar a saída. Vamos improvisar a resistência.

Escritor e ativista social, nascido em Madureira, Rio de Janeiro. Em 2016 lançou Rio em Shamas, indicado ao Jabuti de 2017, pela Editora Objetiva. Foi roteirista na Rede Globo e Multishow/A Fábrica, colunista da Folha de São Paulo e Metrópoles.

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