Transcrevendo Vivências: Raiva
Leitura: 2 minA raiva é um sentimento muito presente e, por muitos momentos, reprimida; mas a raiva que bate no meu peito [e no nosso peito] é válida e deve ser respeitada. Eu não tenho de ficar cumprindo um papel social de ser risonha, alegre, dócil e amorosa; esse lugar que é esperado de corpAs dissidente de gênero e sexualidade, no sentido de “sanar” essa carência que é fraturada dentro da lógica patriarcal burguesa.
A raiva parte de um lugar pouco debatido e muito controverso para o nosso próprio entendimento enquanto ser. Ainda quando se é uma pessoa preta e tem de lutar contra o estereótipo de “raivosa”, mas sim, sou raivosa, tenho muita raiva dentro de mim, porque nunca me foi permitido extravasar esse sentimento, esse que adoece.
Me perceber adulta e perceber a imaturidade dentro das relações sociais não é uma análise fácil. A projeção da nossa raiva é depositada em terceiros, mas pera lá: quem são essas pessoas? Foram elas que te feriram ou elas te remetem à dor?
Quem são os verdadeiros culpados das dores e das cicatrizes que marcaram a minha corpa travesty e bissexual? Será que há repasse de culpa e de responsabilidade nesse combo? As precoces e singelas amarras violentadoras que nos submetem ainda na infância – momento esse em que a nossa subjetividade vem sendo formada e (des)construída, são gatilhos que levaremos para o resto de nossa vida.
O papel de gênero socialmente imposto desde um chá de revelação de “gênero”, conduz para a perpetuação dessa lógica. Ao longo do processo de formação desse indivíduo, quantas violações à sua identidade serão acometidas? Nossos corpos desde cedo são catapultados para a manutenção e reprodução da família eurocêntrica burguesa, composta por pai, mãe, filhos e, se pá, um pet.
E o que fazer quando dentro desse processo há uma ruptura do modo de produção predestinado? A violência enfrentada por pessoas trans começa desde cedo. A nossa raiva e o nosso ódio são compulsoriamente amadurecidos e acabam por ser enraizados, tornando- se o nosso próprio algoz.
Quem sou eu ao me olhar no espelho se não dor; se não raiva; se não frustração? Há um ditado popular que diz “pessoas feridas ferem e pessoas magoadas, magoam”. As minhas dores estão comigo, me fizeram ser quem fui e quem sou, porém, ter maturidade de lidar com a raiva, com o grito entalado e reprimido até hoje, gera uma claustrofobia interna. Talvez seja preciso fugir para se encontrar.
Quem somos nós nesse processo humano de reconhecer nossas próprias feridas?